A 1 de Outubro de 1860, contando 35 anos, entrava Camilo na Cadeia da Relação do Porto, no culminar de uma ‘via dolorosa’ iniciada pelo processo de adultério movido por Manuel Pinheiro Alves. Entre laivos de um certo exibicionismo romântico e na esperança de alguma atenuante, fora a sua entrega voluntária.
A sua estadia na Relação durou até 16 de Outubro de 1861, data da sentença de absolvição. Não é fácil, porém, conjecturar os sentimentos que o invadiram durante esse período, assim como o não é também no momento em que respirou de novo a liberdade, pois, pela sua irreverência, nunca conseguira captar e jamais lograra predispor favor ou simpatia da sociedade. O ambiente que o privava da mulher amada, cerrava-lhe a alma em espessa névoa de incerteza, que só a leitura e a escrita atenuavam.
Contudo, nem as visitas, nem as saídas, nem sequer o tempo passado a ler e a escrever, o impediram de observar atentamente os dramas que pejavam aquele antro de misérias. Movido por uma profunda sensibilidade e por uma apaixonada e sincera empatia com o sofrimento dos companheiros de cárcere, numa verdadeira fraternidade pela desgraça enformada por uma imensa bagagem literária, viveu Camilo um dos monumentos mais tensos da sua produção.
De facto, era este incessante ímpeto criativo, ficcional e também jornalístico, que, embora a uma luz coada por ferros, o revigorava e do qual nasceram, numa pulsão tantas vezes de apurada ironia, entre muitos outros, o Amor de Perdição, alguns dos Doze casamentos felizes e estas Memórias do Cárcere.
O certo é que em função da sua prodigiosa bagagem de leituras, do seu conhecimento da psicologia do leitor, do conteúdo dramático das ‘fábulas’ e da sua veemência passional, as Memórias apresentam-se como uma verdadeira peça teatral, cujo palco é o Cárcere, e onde, na sucessão dos vários actos, desfila o estado da sociedade do século XIX, num riquíssimo e variado conjunto de personagens e tipos arrancados à vida, com as suas marcas, as suas taras ou as suas sensibilidades, não raro singularmente mescladas com o crime, que pensam, agem e falam com viva espontaneidade ou dão lugar a intervenções do autor-narrador expressas numa linguagem de matizes inequivocamente românticos.
Por todas estas razões, esta obra representa, na obra de Camilo, para além do seu valor estético próprio, um adestramento do maior alcance na construção das personagens e no apuramento das virtualidades estilísticas que vão caracterizar toda a sua obra.
Aníbal Pinto de Castro
Director da Casa de Camilo
“Memórias do Cárcere”: Uma obra-prima coada por ferros
Abril 17, 2008 por casadecamilo
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