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Mulheres, Minho
“… a esbelta dama era portuguesa de lei, portuguesa do Minho, dos arrabaldes de Braga, onde os reis sensualistas do Islão mandariam subornar as suas sultanas, se soubessem que nestas regiões as mulheres, que, por acaso, saem feias das mãos da Natureza, aprendem a ser bonitas com as flores.” (15)
“(…) não há aí cousa mais nua, mais pública e assoalhada que tudo quanto se chamam particularidades da vida privada, mormente quando o divulgarem-se torna e redunda em filáucia de uns tolos célebres, que seriam invejáveis se as próprias coroas, com que cingem as frontes, lhes não dessem muito que doer com os espinhos escondidos – quero dizer em estilo espalmado: se as próprias mulheres, que lhes dão os triunfos, não fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos vangloriosos o castigo infernal do seu orgulho.” (18)
Civilização
“A civilização beneficia assim as mulheres que não podem adjectivar-se publicamente virtuosas, nem mesmo quando visitam com a esmola a mansarda do doente desvalido. Nesta especialidade, o jornalismo comporta-se louvavelmente. Quando um localista pregoa o donativo de alguns lençóis que opulenta matrona, por variar prazeres de alma, já cansada dos transitórios gozos de outra espécie, mandou a um asilo de lázaros, e diz que a humanidade abençoa a virtuosa senhora, não nos havemos de entalar com este decreto de virtude: a humanidade manda que o engolamos. O localista tem razão: é bom que a palavra virtude sirva de piedoso visco à liberalidade de pessoas, que desejam alguma vez ao lerem-se virtuosas, experimentar a satisfação de se verem ir à posteridade na secção do noticiário.” (18)
Vaidade
“A vaidade levanta o palácio em que se acolhem os desamparados de um tecto de palha e de uma enxerga de folha. A vaidade doura-lhes os frontais do asilo, atapeta-lhe os pórticos, ventila-lhe por janelas de luxuosa alvenaria os dormitórios, tudo lhe magnifica e opulenta em pedra e estofo: tudo lhe dá em desconto das dores da velhice alaceada de enfermidades; tudo, excepto o pão da alma, a doutrina da paciência, a comunhão santíssima, que refaz o espírito quando o corpo desfalece.” (19)
Romance filosófico
“Sinceramente não sei corrigir-me do vício das divagações. Há quem defenda e demonstre que o romance filosófico deve ser assim alinhavado a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então dizem-me que as novelas são tratados de metafísica. Se as minhas derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metafísica! Ser eu, sem dar tino de mim, um escritor subtil, imperceptível, impertinente, medonho, e, acima de tudo, sério! Escritor sério! Quando se agarra a fama pelas orelhas, e a gente obriga a dar pregão da nossa seriedade de escritor, a glória vai procurar os nossos livros sérios às estantes dos livreiros, e lá se fica a conversar delícias com as brochuras imóveis, enquanto a traça não dá neles e nela.
O Universo, e a Humanidade principalmente, ganha muito com os romances sérios: exceptuam-se da Humanidade os editores. Um meu amigo publicou seis volumes de novelas de costumes morais, a ponto de toda a gente dizer que não haviam tais costumes em Portugal. Recebeu muito abraço de umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos filhos a obediência aos pais, aos próximos o mútuo amor, e à Humanidade o temor de Deus. As seis novelas eram glossas aos dez mandamentos. Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguesas, logo que o espírito público se balsamificasse da unção dos seis livros. Volvidos porém uns dous anos, as estatísticas iam delatando em aumento a criminalidade pública. Espanto no meu amigo autor, e desanimação melancólica dos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer que o meu amigo, continuando a escrever por aquele teor e feitio, endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se entortava cada vez mais para eles, recomendaram ao escritor moralista que vendesse a eles romances, e a quem quisesse os sermões. Ora, deu-se o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.” (22-23)
Aldeia
“A aldeia, meu bom amigo – continuou Afonso, voltando-se para mim com solene e galhofeira seriedade –, a aldeia dispensa ao espírito investigador um curso completo de ciências. A poesia do estômago, esta mais que todas poesia humanitária, não se dá nas cidades; lá come-se materialmente, aqui dá-se ao espírito a presidência em todas as matérias assimiláveis.” (27)
Poesia
“O que é a poesia senão aquele estado diáfano e sublimado da alma, que se está engolfando e gozando num invólucro sadio, depurado de ruins vapores, e puro de toda a exalação crassa de um estômago derrancado, azedo e entumecido? Pois hás-de tu saber que um estômago limpo é a fome de todo o saber; e que a ciência construtora dos selectos alimentos do sangue é a que mais de perto se relaciona e ata com a arte de exprimir cadentemente os afectos da alma.” (Afonso de Teive, 27-28)
(Continua)
Amadeu Gonçalves
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