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Dimensão antropológica (homem, lágrimas)
“(…) o homem, quando chora, desafoga uma paixão e abafa noutra: a do ódio. Prantos que salvam são os da dor imerecida, os apelos das iniquidades do mundo para o tribunal da Providência.” (73)
Dimensão antropológica (homem)
“(…) do bruto que ri de seu mesmo vilipêndio, do bruto, enfim, chamado homem.” (78)
Lágrimas
“(…) as lágrimas só servem para exprimir os sofrimentos comuns.” (79)
Dimensão ética (expiação, amor)
“(…) eternidade para a expiação, e eternidade para o amor.” (83)
Fen. do amor (imagem do Céu)
“Morrer com o Céu a abrir-se além no horizonte, ouvindo já os hinos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em lágrimas o sangue do coração, sem visões bem-aventuradas, sem estímulo de predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos pés do triunfador que a despreza e adora… sublime extravagância, se querem que lhe eu não chame santíssimo martírio!” (93)
Dimensão antropológica (prazer)
“(…) o viver sem gozar é um triste, se não estúpido, prelúdio da morte, em redor da sepultura (…)” (97)
Dimensão antropológica (família)
“Chegamos a um tempo em que ninguém pode sinceramentye dizer que conhece seu pai. Os assentos dos baptismos estão todos falsificados. Os mandamentos da lei de Deus, o nono sobre todos, vai ser tirado do catecismo. Vem aí um tempo em que o artigo da lei santa há-de ser assim reformado: «Não desejarás a tua mulher para não incomodar os direitos do próximo!» Onde irá isto assim parar (…)” (108)
Dimensão antropológica
“Esquecer, sim; mas esquecer é desprezo, não é perdão.” (110)
Fen. do amor (cartas, língua portuguesa)
“Escrita e fechada a carta, sobresteve Afonso no remetê-la. Acaso iria ela, sem desvio, às mãos de Teodora? As injustas suspeitas não poderiam ter Eleutério de sobreaviso? E, demais, reatadas as ligações de estima, iria Afonso, contra a vontade de sua mãe, para casa e sustentaria ali o cortejo à mulher casada?
Estes qyesitos falavam à razão; porém, a pobrezinha da razão estava já escondida na consciência, e a consciência ensurdecera com a guisalhada do baile carnavalesco em que seu dono a mandara escutar os costumes do seu tempo.
Foi a carta com direcção a Braga. Era dia de feira quando ela chegou ao correio: estava ali o marido de Teodora vendendo cereais. Foi à lista postal ver se seu pai tinha carta de parentes do Brasil; e, como não se entendia bem com os nomes maiores de três sílabas, pediu que lhe lessem a lista inteira. Quando o obsequioso leitor chegou a Teodora Palmira Vilar de Sousa, exclamou Eleutério:
– É a minha mulher! Há-de ser carta do livreiro.
Convém saber que a morgada se entendia directamente com os seus livreiros fornecedores.
Eleutério foi tirar a carta, e deu-lhe nos olhos, afora o lustre do sobrescrito, o lacre azul fechado com armas, e, mais que tudo, a marca de Lisboa.
Não me atrevo a compor o solilóquio de Eleutério Romão. Sei que ele andava com a carta às voltas, entre mãos, e às vezes esfregava entre dous dedos o papel, como se pelo tacto pudesse inferir do conteúdo. Estava com ele o regedor da sua freguesia, o mesmo que lera a lista, e lhe lia na alma agora.
– Que estás a malucar, Eleutério? – disse ele. – A modo que essa carta te deu no goto!…
– A falar a verdade – respondeu o marido de Teodora –, esta letra não na conheço, nem estas armas reais!… Minha mulher não conhece ninguém em Lisboa, e estas letras, compadre, parece que rezam Lisboa.
– É como diz: Lisboa sem tirar nem pôr. E então?… Achas que ela…
– Estão-me a dar guinadas de abrir isto!… Que dizes tu, compadre?
– Eu cá, se fosse comigo, já a carta estava aberta… Mulher minha a ter cartas sem eu saber de quem!… Deus me defenda!
Palavras mal eram ditas, que Eleutério quebrou o lacre e passou a carta ao regedor, dizendo:
– Lê lá… ela é tamanha! Parece uma sentença!… Vamos ver isso, que eu já me não sinto escorreito.
O regedor tomou o manuscrito de oito páginas entre as mãos, pôs-se em atitude abrindo as pernas em circunflexo, e leu engasgadamente: «De onde vem esta celestial harmonia, que a minha alma ouviu, quando o Céu me bafejava a infância, e as delícias todas da existência me eram pronunciadas nos sonhos?…»
O regedor revirou os olhos pasmados a Eleutério, e disse:
– Tu percebeste isto, compadre?
– Assim me Deus salve, que não percebi palavra – respondeu Eleutério Romão, esbugalhando os olhos sobre a escrita cabalística.
– Português acho que é! – tornou o regedor, consultando a opinião do compadre.
– Isso é, lá português é… Ora torna a dizer.
O leitor repetiu, e disse:
– Fala aqui em alma, e sonhos, e delícias. Sabes que mais? Isto, seja lá o que for, não me cheira bem!… Aqui, Deus me perdoe, há maroteira daquela casta!… Deixa-me ver mais um bocado a ver se pesco alguma coisa.
E, continuando, leu:
«Sonhos de anjo, aluminados pela imagem lúcida da filha da minha alma! Volvei, volvei, orvalhai a flor requeimada, dai uma lufada de primavera ao meu coração regelado pelos frios desta infinita noite… Oh minhas donosíssimas quimeras!…»
– E agora entendeste? – voltou o regedor. – Eu estou como a Felícia de Abrantes, pior que dantes. Isto, se não é latim, é o diabo por ele!
– Queres tu que se pergunte a alguém?! – acudiu Eleutério. – A gente há-de achar quem lhe explique isto cá em Braga… Fala-se aí a um padre que eu conheço, ao capelão das Ursulinas.
– Dizes bem… Tu não hás-de ir para casa sem tirar isto a limpo… Queres tu ver que aí vem o homem que nos explica o negócio? – perguntou o magistrado administrativo. – É meu compadre Fernão de Fonte Boa.
Era Fernão de Teive, conhecido por de Fonte Boa por ser lá o seu morgadio. Com o velho fidalgo vinha Mafalda, apoiada no braço dele com doentio aspecto.
O regedor descobriu de longe a cabeça e saiu ao encontro de Fernão, que o recebeu com o agrado dos antigos fidalgos.
– Que é feito de ti, compadre, que te não vejo há cem anos? – disse o velho. – Desde que te fizeram regedor, acho que não cuidas senão em fabricar deputados, e comer os salpicões dos recrutas passados pela malha! Anda lá, meu homem, que em tempos melhores havias de ganhar o posto de capitão-mor, que jeito para comer os saudosos lombos tens tu. Então que é feito, rapaz! Quem é aqueloutro? Se me não engano, é o Eleutério do Romão.
– Para servir a V. Exª – disse Eleutério com três mesuras de cabeça exageradas. – Sou eu para servir a V. Exª
Fernão inclinou um olhar irónico sobre o ombro da filha, e disse com um mal represo frouxo de riso:
– Aqui tens o marido da morgadinha da Fervença.
Mafalda escassamente lançou um olhar ao sujeito, e baixou os olhos com gesto de notável comoção.
E o regedor, tirando a carta da algibeira, disse:
– Eu queria consultar o meu excelentíssimo compadre a troco de uma carta que nem eu nem meu compadre Eleutério entendemos. A gente, como o outro que diz, o que sabe é da lavoura, e mal assina o seu nome. O caso é este: aqui o compadre achou no correio esta carta prá mulher. Teve lá seus arrepios e abriu-a. Começamos a ler, mas nem pra trás nem pra diante. As palavras parecem portuguesas, acho eu; mas nós não sabemos o que elas rezam. Se o senhor compadre fizesse o favor de ler isto…” (110-113)
(Continua)
Amadeu Gonçalves
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