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Archive for the ‘Opinião’ Category


«Numa tarde do princípio de junho desse angustiado e revolto ano de 1890, tão cortado de sobressaltos, agitações e desgraças, no calmo e verdejante retiro aldeão da sua casa de S. Miguel de Ceide, e nesse gabinete de trabalho em que o cercavam os seus adorados livros, companheiros fiéis de toda uma vida de intensa actividade literária. Camilo Castelo Branco, convencido do irremediável infortúnio que condenava os seus derradeiros dias à treva perpétua, abria por sua própria mão as portas de bronze da Morte, metendo na cabeça uma bala de revólver.

 Mas essa bala fatal, que cortava o fio da existência, já tão gasto e adelgaçado pelo sofrimento, rompia também, de vez, os últimos filamentos da nossa tradição literária. Porque a verdade é que, com esse glorioso vulto de escritor, se extingue a linhagem clássica e romântica, e com ele morre a velha língua portuguesa. É um ciclo que se encerra nesse trágico epílogo duma grande vida, laboriosa e fecunda. O seu mausoléu não é apenas a jazida fúnebre dum literato ilustre: é a sepultura de toda uma literatura morta.»

Luís de Magalhães

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«Era Camilo quem dizia haver três maneiras de se celebrizar: ou entrando no céu, ou na academia, ou na… cadeia.
No céu não entrou, com certeza, que ele não foi nenhum pobre de espírito.
A academia pertenceu – mas não nos consta que, alguma vez, lá tivesse posto os pés. Lá saberia porquê.
Na cadeia esteve – não uma, mas duas vezes.
Não ganhou celebridade pela banda do céu – por a porta lhe estar trancada.
Não ganhou celebridade por ser académico – porque a academia não dá celebridade a ninguém. A imortalidade que ela assegura morre no dia seguinte àquele em que o imortal desce à cova. A academia é como as estalagens espanholas do tempo da Maria Castanha: nestas o hóspede só encontrava o que levava consigo; naquela o académico só encontra a dose de imortalidade que leva consigo próprio.
Celebridade também não a ganhou por ter bisado a entrada na cadeia.
E, todavia, Camilo é célebre. Célebre – vamos dizer a coisa depressa – por ser picado do génio. As bexigas não contam.»

Cruz Malpique

 

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Deus
“Deus não falta aos infelizes sem culpa, nem mesmo aos culpados…” (114)

Fen. do amor (encontro, Adão, Eva)
“O leitor já sabe por todos os romances, por todos os dramas, e por todos os actos da vida real, semelhantes, muito ou pouco, a este, o que Teodora fez. Um ah!, ou dous, é o nariz-de-cera para todas as surpresas, fabricado desde Homero, ou mais de longe. Adão, quando viu Eva, devia dizer: Ah! A Eva, quando viu a serpente, se não fugiu, eu vou jurar, sem menoscabo do historiador Moisés, que mais ou menos nervosa, exclamou: Ah! A interjeição é coeva do homem, que nasceu cheio de espantos.

Espanto, porém, igual ao da morgada, se o houve, foi o meu, quando Afonso me disse que Teodora não expediu do seio interjeição nenhuma, nem ah! sequer.

– Pois quê?! – perguntei eu com a respiração abafada. – Que disse ela?!

– Levantou as mãos, ajuntou-as sobre o seio, postas em oração; depois, caiu em joelhos, ia cair, quando eu, ajoelhado também, a recebi, a desfalecer.” (118)

Literatura (naturalismo, metaliteratura)

“(…) se tu crês que um homem, acostumado a fazer romances, é uma espécie de naturalista (…)” (118-119)

Dimensão antropológica (metaliteratura)
“Se, como diz o Dante, nada há aí mais triste que recordar na miséria os tempos felizes, e pelos menos nauseabundo recordar em tempos felizes vergonhosas misérias. Todavia, como já agora, inexorável romancista, me não dispensam o remate deste longo prólogo do capítulo final do meu livro – livro que eu chamaria Amor de Salvação –, concluirei a história e irei depois purificar os meus lábios no rosto de meus filhos.” (119)

Fen. do amor (amor maternal, Afonso e Palmira)
“- Não basta o amor da mulher amante para consolar as saudades de uma mãe. Eu também a tinha, quando te amava, e abriguei-me no teu coração. Que diferença…” (129)

Fen. do amor (Afonso e Mafalda)
“«Vivamos como amantes que dispensam serem admirados para serem venturosos.»”

(…)

Já me chamas tua amiga. A mulher que ama, quando lhe dão tal nome, sabe que é cousa de pouca monta para quem lho dá.” (133)

Oração
“A oração, esse divino desabafo de enormes aflições.” (148)

Fen. do amor (paixões)
“É preciso que a vida sensitiva se amorteça antes da actividade moral para que as paixões malogradas vinguem o total quebranto do homem.” (154)

Padres
“Padre Joaquim era um modelo de padres, capelão da casa, havia trinta e cinco anos; padre que se me ia fugindo deste romance por um cabelinho: o que seria novidade nos meus livros. Quando eu puder arquitectar uma novela sem padre, hei-de chamar-me romancista puxado de imaginação. O mesmo dos escritores floridos, Almeida Garrett, segundo disse e provou, tinha o vezo dos frades. Ele, e eu, cá muito no couce processional dos seus discípulos, havemos de fazer amar os frades e os padres, pelo menos os padres capelães bem procedidos e venerandos como padre Joaquim, capelão da cada de Fonte Boa.” (163)

Fen. do amor (casamento)
“Dizem que a convivência de anos entre esposos, que muito se amam, traz consigo de seu natural uns silêncios significativos do esfriamento das almas.” (178)

Deus
“Sabes tu o que é ter um Deus que nos escuta, que nos reprova, que nos louva, que nos povoa o espaço onde a alma insaciável do homem encontra um vazio horrendo, uma respiração aflitiva!…” (181)

Amadeu Gonçalves

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Dimensão antropológica (homem, lágrimas)
“(…) o homem, quando chora, desafoga uma paixão e abafa noutra: a do ódio. Prantos que salvam são os da dor imerecida, os apelos das iniquidades do mundo para o tribunal da Providência.” (73)

Dimensão antropológica (homem)
“(…) do bruto que ri de seu mesmo vilipêndio, do bruto, enfim, chamado homem.” (78)

Lágrimas
“(…) as lágrimas só servem para exprimir os sofrimentos comuns.” (79)

Dimensão ética (expiação, amor)
“(…) eternidade para a expiação, e eternidade para o amor.” (83)

Fen. do amor (imagem do Céu)
“Morrer com o Céu a abrir-se além no horizonte, ouvindo já os hinos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em lágrimas o sangue do coração, sem visões bem-aventuradas, sem estímulo de predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos pés do triunfador que a despreza e adora… sublime extravagância, se querem que lhe eu não chame santíssimo martírio!” (93)

Dimensão antropológica (prazer)
“(…) o viver sem gozar é um triste, se não estúpido, prelúdio da morte, em redor da sepultura (…)” (97)

Dimensão antropológica (família)
“Chegamos a um tempo em que ninguém pode sinceramentye dizer que conhece seu pai. Os assentos dos baptismos estão todos falsificados. Os mandamentos da lei de Deus, o nono sobre todos, vai ser tirado do catecismo. Vem aí um tempo em que o artigo da lei santa há-de ser assim reformado: «Não desejarás a tua mulher para não incomodar os direitos do próximo!» Onde irá isto assim parar (…)” (108)

Dimensão antropológica
“Esquecer, sim; mas esquecer é desprezo, não é perdão.” (110)

Fen. do amor (cartas, língua portuguesa)
“Escrita e fechada a carta, sobresteve Afonso no remetê-la. Acaso iria ela, sem desvio, às mãos de Teodora? As injustas suspeitas não poderiam ter Eleutério de sobreaviso? E, demais, reatadas as ligações de estima, iria Afonso, contra a vontade de sua mãe, para casa e sustentaria ali o cortejo à mulher casada?

Estes qyesitos falavam à razão; porém, a pobrezinha da razão estava já escondida na consciência, e a consciência ensurdecera com a guisalhada do baile carnavalesco em que seu dono a mandara escutar os costumes do seu tempo.

Foi a carta com direcção a Braga. Era dia de feira quando ela chegou ao correio: estava ali o marido de Teodora vendendo cereais. Foi à lista postal ver se seu pai tinha carta de parentes do Brasil; e, como não se entendia bem com os nomes maiores de três sílabas, pediu que lhe lessem a lista inteira. Quando o obsequioso leitor chegou a Teodora Palmira Vilar de Sousa, exclamou Eleutério:

– É a minha mulher! Há-de ser carta do livreiro.

Convém saber que a morgada se entendia directamente com os seus livreiros fornecedores.

Eleutério foi tirar a carta, e deu-lhe nos olhos, afora o lustre do sobrescrito, o lacre azul fechado com armas, e, mais que tudo, a marca de Lisboa.

Não me atrevo a compor o solilóquio de Eleutério Romão. Sei que ele andava com a carta às voltas, entre mãos, e às vezes esfregava entre dous dedos o papel, como se pelo tacto pudesse inferir do conteúdo. Estava com ele o regedor da sua freguesia, o mesmo que lera a lista, e lhe lia na alma agora.

– Que estás a malucar, Eleutério? – disse ele. – A modo que essa carta te deu no goto!…

– A falar a verdade – respondeu o marido de Teodora –, esta letra não na conheço, nem estas armas reais!… Minha mulher não conhece ninguém em Lisboa, e estas letras, compadre, parece que rezam Lisboa.

– É como diz: Lisboa sem tirar nem pôr. E então?… Achas que ela…

– Estão-me a dar guinadas de abrir isto!… Que dizes tu, compadre?

– Eu cá, se fosse comigo, já a carta estava aberta… Mulher minha a ter cartas sem eu saber de quem!… Deus me defenda!

Palavras mal eram ditas, que Eleutério quebrou o lacre e passou a carta ao regedor, dizendo:

– Lê lá… ela é tamanha! Parece uma sentença!… Vamos ver isso, que eu já me não sinto escorreito.

O regedor tomou o manuscrito de oito páginas entre as mãos, pôs-se em atitude abrindo as pernas em circunflexo, e leu engasgadamente: «De onde vem esta celestial harmonia, que a minha alma ouviu, quando o Céu me bafejava a infância, e as delícias todas da existência me eram pronunciadas nos sonhos?…»

O regedor revirou os olhos pasmados a Eleutério, e disse:

– Tu percebeste isto, compadre?

– Assim me Deus salve, que não percebi palavra – respondeu Eleutério Romão, esbugalhando os olhos sobre a escrita cabalística.

– Português acho que é! – tornou o regedor, consultando a opinião do compadre.

– Isso é, lá português é… Ora torna a dizer.

O leitor repetiu, e disse:

– Fala aqui em alma, e sonhos, e delícias. Sabes que mais? Isto, seja lá o que for, não me cheira bem!… Aqui, Deus me perdoe, há maroteira daquela casta!… Deixa-me ver mais um bocado a ver se pesco alguma coisa.

E, continuando, leu:

«Sonhos de anjo, aluminados pela imagem lúcida da filha da minha alma! Volvei, volvei, orvalhai a flor requeimada, dai uma lufada de primavera ao meu coração regelado pelos frios desta infinita noite… Oh minhas donosíssimas quimeras!…»

– E agora entendeste? – voltou o regedor. – Eu estou como a Felícia de Abrantes, pior que dantes. Isto, se não é latim, é o diabo por ele!

– Queres tu que se pergunte a alguém?! – acudiu Eleutério. – A gente há-de achar quem lhe explique isto cá em Braga… Fala-se aí a um padre que eu conheço, ao capelão das Ursulinas.

– Dizes bem… Tu não hás-de ir para casa sem tirar isto a limpo… Queres tu ver que aí vem o homem que nos explica o negócio? – perguntou o magistrado administrativo. – É meu compadre Fernão de Fonte Boa.

Era Fernão de Teive, conhecido por de Fonte Boa por ser lá o seu morgadio. Com o velho fidalgo vinha Mafalda, apoiada no braço dele com doentio aspecto.

O regedor descobriu de longe a cabeça e saiu ao encontro de Fernão, que o recebeu com o agrado dos antigos fidalgos.

– Que é feito de ti, compadre, que te não vejo há cem anos? – disse o velho. – Desde que te fizeram regedor, acho que não cuidas senão em fabricar deputados, e comer os salpicões dos recrutas passados pela malha! Anda lá, meu homem, que em tempos melhores havias de ganhar o posto de capitão-mor, que jeito para comer os saudosos lombos tens tu. Então que é feito, rapaz! Quem é aqueloutro? Se me não engano, é o Eleutério do Romão.

– Para servir a V. Exª – disse Eleutério com três mesuras de cabeça exageradas. – Sou eu para servir a V. Exª

Fernão inclinou um olhar irónico sobre o ombro da filha, e disse com um mal represo frouxo de riso:

– Aqui tens o marido da morgadinha da Fervença.

Mafalda escassamente lançou um olhar ao sujeito, e baixou os olhos com gesto de notável comoção.

E o regedor, tirando a carta da algibeira, disse:

– Eu queria consultar o meu excelentíssimo compadre a troco de uma carta que nem eu nem meu compadre Eleutério entendemos. A gente, como o outro que diz, o que sabe é da lavoura, e mal assina o seu nome. O caso é este: aqui o compadre achou no correio esta carta prá mulher. Teve lá seus arrepios e abriu-a. Começamos a ler, mas nem pra trás nem pra diante. As palavras parecem portuguesas, acho eu; mas nós não sabemos o que elas rezam. Se o senhor compadre fizesse o favor de ler isto…” (110-113)
(Continua)

Amadeu Gonçalves

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Fen. do amor (literatura, ficção, poesia)
“A mulher pálida é a que vem cantada em poemas e extremada em romances; ora, quando a poesia e prosa conspiram a dar a realeza do amar e padecer à mulher pálida, havemos de curvar-lhe o joelho, na certeza de que ela se fará amante e mártir, por amor do poema e do romance, ainda mesmo que a natureza lhe tenha temperado o coração de aço.” (48)

Fen. do amor (beleza)
“Beleza absoluta, de telhas abaixo, há uma só, que é a da mulher formosa; e, na variada manifestação de beleza em diversidade de tipos, há uma superior formosura, que constitui o belo universal, o belo que prende e leva todos os olhos. A mulher, assim dotada, tanto impressiona o espírito educado na visão e admiração das maravilhas da natureza e arte, como o espírito desculto de toda a compostura e discernimento.” (50)

Literatura (linguagem, ideia)
“Se a linguagem fosse mais joeirada de plebeísmos, a concisão da ideia poderia atribuir-se a Shakespeare. A mais cristalina água é a que rebenta de penhascos ermos: assim, de espíritos selváticos, ressaltam por vezes umas ideias límpidas, de uma sensibilidade original, que faz pensar.” (50)

Fen. do amor (doenças)
“A morgadinha ouviu ansiada o tio, e respondeu com um ataque de nervos, que era já o terceiro que a insultava; simpática doença em meninas pálidas, se é o amor contrariado que lhes desmancha o aparelho nervoso.” (51)

Dimensão antropológica (indumentária, interioridade)
“Li algures, e estou convencido de uma verdade que soa como paradoxo: e é que o espírito de cada pessoa tem muito que ver com o modo como ela está entrajada. A intelectualidade apouca-se e confrange-se quando o sujeito se olha em si, e se desgosta da compostura dos seus vestidos. O desaire do espírito como que se identifica ao desaire do corpo. As ideias saem coxas e esconsas do cérebro; a expressão tardia e canhestra denuncia o retraimento da alma; há o que quer que seja fenomenal que eu tivera em conta de desvario meu, se muitos sujeitos me não tivessem confessado semelhantes segredos de psicologia, em que o alfaiate exercita importante alçada.” (52-53)

Fen. do amor (como as mulheres, às vezes, amam os homens)
“(…) o homem aceitável como libertador de um seio que quer encher-se de perfumes, sem se dar em servidãoao homem, que lhe vai descancelar os áditos do mundo. Assim é que muitas mulheres têm amado aqueles homens que as salvam; deste amor assim chamado por não haver mais elástico epíteto que dar à cousa, e que surdem os irremediáveis infortúnios, os ódios irreconciliáveis, e as afrontas que levantam as campas, encerram algozes vítimas, e ficam ainda de pé sobre as lousas infamadas, pregoando o opróbio dos filhos gerados no crime e amaldiçoados na infâmia de suas mães… Colho as velas; que, neste rumo, ia variar em sensaboria encapotada em moralização: cousa duas vezes importuna.” (54)

Fen. do amor (riso)
“Rir às cascalhadas é que eu ainda não vi amante ditoso nenhum, no instante solene de se crer amado. Eleutério Romão dos Santos é o primeiro modelo que a natureza me oferece.

E a verdade é só uma. Ao beijo da felicidade que endouda e transporta, o homem, que não estoura em explosões de riso, deve de estar mui calcinado de coração.” (56-57)

Filosofia e literatura, personagens (Afonso de Teive, vida universitária)
“Fui para a Universidade, muito escasso de preparatórios, e por isso me matriculei em Filosofia. Logo aos primeiros dias conheci que fora um erro confiar nas distracções juvenis de Coimbra. Alistei-me primeiramente na roda dos moços velhos, gente ridícula; mas de uma ridiculez que não distrai ninguém. Cada um parecia que trazia dous oráculos na cabeça; antes de expenderem os seus dogmas, punham-se à escuta da inspiração; e, ao abrirem a boca, a própria Minerva das escadas latinas cuidavam eles que se apeava do soco para escutá-los. Zanguei destas criaturas infestas, e fui-me inscrever na fila dos literatos militantes, gente de pouco saber, de muitas maravilhas, questionadora por necessidade de adivinhar a discutir o que não sabia da leitura, enfim, futuras esperanças da pátria, que bem sabiam que uma diminuta ciência, com muita ousadia, basta para atingir os pináculos sociais. Tinham estes rapazes um jornal. Publiquei sem assinatura uma das muitas poesias que eu tinha escrito nos arvoredos de Belas, nos tempos em que a imagem lagrimosa da reclusa das Ursulinas ia lá comigo a ouvir a voz de Deus nas harmonias da terra. A poesia tinha a religiosa suavidade de um amor que se alivia aos santos enlevos do coração virgem. Os literatos disseram que eu imitava Lamartine, e que mesmo o traduzia quase literalmente em algumas estrofes. Ora eu não tinha ainda lido Lamartine: fui lê-lo, e corei de vergonha pelo grande poeta comparado comigo. Em todo o caso, desgostei-me dos meus colegas por se darem uns ares de tolice muito por aí fora dos limites razoáveis. Passados tempos dei ao jornal uma outra poesia, fremente de paixão, arrojada, vertiginosa, escrita depois do meu desastre. Os meus colegas avisaram-me de que a academia, lendo a minha ode, declarara que eu traduzira Vítor Hugo. Fui ler depois Vítor Hugo, e lastimei que os soberanos do génio estivessem sujeitos às chuvas de todo o mundo, sem excepção dos literatos meus contemporâneos da Universidade.” (68-69)

Literatura, personagens (Afonso de Teive)
“Instado por minha prima, escolhi a leitura da Noite do Castelo ou os Ciúmes do Bardo. Comecei a ler pelo livro; porém, à segunda página, dei de mão insensivelmente ao livro, e declamei de cor com tamanho entusiasmo, e com a voz tão vibrante de lágrimas, que minha mãe rompeu em soluços, e minha prima empalideceu de assustada da minha intimativa.” (70-71)

Civilização
“(…) e maldisse a civilização, que fechara os áditos da paz quando a guerra sacudia as suas serpes mais inexorável; maldisse a ilustração, que aluíra a enfermaria dos empestados do vício, quando a peste ardia mais devoradora. A minha angústia era ainda imensa, porque eu não podia dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor mundo.” (71)
(Continua)
Amadeu Gonçalves

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Afonso de Teive
“Crer que o bem-estar da alma procedia de uma brutificação dela mesma, e que o encontrar esse bem obrigava a desatar-se a gente da convivência de sujeitos policiados, de mulheres inspiradoras e das magnificências da arte, enfim, de tudo que todos buscam sofregadamente, parecia-me absurdeza, e falsificação no carácter de Afonso de Teive.” (28)

Ceide
“Não longe da obscura paragem de Afonso de Teive, à margem do córrego chamado Pele, riacho que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em letra redonda, assentei eu a minha tenda nómada. A minha tenda são uns vinte volumes, um tinteiro de ferro e um cabo de pena de osso, que me deram noutro ponto do mundo, onde há quatro anos assentara também a minha tenda – ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu sestro vagabundo: era no ano do Senhor de 1860, nos cárceres da Relação do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não impedia que esta minha tão querida pena, tão amiga confidente daquelas trezentas e oitenta noites – de Janeiro todas, que lá dentro dos congelados firmamentos de pedra reina perpétuo Inverno, e giam as abóbadas, não sei se lágrimas, se sangue, se água represada nos poros do granito –, não impedia, vinha eu dizendo, que a minha pena, com o seu incansável fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos da alvorada me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar de graças ao Senhor, e o confessionário onde abri minha alma ao perscrutar do anjo providencial que me dava a unção dos atletas e dos grandes desgraçados para mais afrontosos e excruciadores suplícios.

Os meus vinte volumes, e o meu tinteiro de ferro, estão hoje sob o tecto gasalhoso de uma alma que eu noutras eras encontrei na minha. Não sei há que séculos isto foi, nem que congérie de abismos nos separam para sempre. Parei aqui, porque ainda aqui, há tempos, se me figura rediviva a imagem do passado, ainda aquela alma se me hospeda no coração em instantes de sonhos do Céu, ainda a pedra tumular das afeições, caídas à voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a saudade é ainda um afecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptível que o passado nos herda.

A casa onde vivo, rodeiam-na pinhais gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soído é a linguagem da noite que me fala: parece-me que é voz de além-mundo, um como burburinho que referve longe às portas da eternidade. Se eu não amasse de preferência o sossego do túmulo, amaria o rumor destas árvores, o murmúrio do córrego, onde vou cada tarde ver a folhinha seca derivar na onda límpida; amaria o pobre presbitério, que há trezentos anos acolhe em seu seio de pedra bruta as gerações pacíficas, ditosas, e incultas destes selvagens felizes que tão iluminadamente amaram e serviram o seu Criador. Amaria tudo; mas amo muito mais a morte.

Aqui, se Deus se amercear de mim, embargando o passo ao anjo exterminador, que contínuo me assalteia os áditos do meu éden, de quinze dias, aqui escreverei, com quanta fidelidade a memória me sugerir, a narrativa que Afonso de Teive me fez.” (32-34)

Camilo, Deus e os homens
“Não sei de que futuro Abril do meu porvir me veio esta manhã um bafejo aromático de flores, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace arcanjo do contentamento. Passou o núncio misterioso, passou depressa, mas o meu espírito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus imenso que na imensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciência repousada, prelibações de bem-aventurança, e honrada aliança com os homens.” (34)

Mulher romântica (Teodora, Conventos)
“Teodora, com dous meses de convento, desenvolveu-se e granjeou ciência da vida que não alcançaria em dous anos de aldeia, da sua solitária aldeia, onde tinha apenas aves, flores e estrelas, a segredarem-lhe iniciações para amor. No convento, as prelecções eram menos vagas, e mais acomodadas à capacidade das educandas. É certo que as mestras não leccionavam ternuras; mas o zelo, com que elas vedavam o pomo, dava a desconfiar que as precautas religiosas lhe tinham saboreado o travor, a não ser que o desdenhavam à míngua de dentes incisivos com que entrassem na casca daquele execrável e tão convidativo fruto de Pentápolis.

Com menos de quinze anos, Teodora completou o exterior de suas graças e o interior do seu espírito. A beleza sabia ela já quantas invejas lhe ganhava entre as condiscípulas, quantas intrigas, quantas repreensões da mestra, à conta do muito enfeitar-se e remirar-se ao espelho. Não importava. A morgadinha da Fervença gostava de ser bela, de ser invejada e perseguida das inimigas, com condição e ressalva de ser admirada pelos galanteadores das suas perseguidoras. Enquanto ao espírito, o saber precoce de grades adentro igualou-a, se não antes avantajou-a muito ao estudantinho de Ruivães que, contra toda a natureza e arte, em colóquio amoroso ficava muito aquém de Teodora, e saía do locutório admirado da esperteza palavrosa da morgadinha.” (37-38)

Literatura, dimensão moral
“Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida real, umas saídas muito desgraçadas ou irrisórias! Ainda bem, para desdouro dos livros desmoralizadores, e luzimento de outros livros de sã moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.” (42)

Mundo
“A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.” (42)

Fen. do amor (cura do amor)
“(…) a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstrigente de uma lágrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuráveis são os que desabafam em rancorosas explosões.” (44)

Morte
“(…) a morte é portelo que todos temos de passar.” (46)
(Continua)
Amadeu Gonçalves

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Mulheres, Minho
“… a esbelta dama era portuguesa de lei, portuguesa do Minho, dos arrabaldes de Braga, onde os reis sensualistas do Islão mandariam subornar as suas sultanas, se soubessem que nestas regiões as mulheres, que, por acaso, saem feias das mãos da Natureza, aprendem a ser bonitas com as flores.” (15)

“(…) não há aí cousa mais nua, mais pública e assoalhada que tudo quanto se chamam particularidades da vida privada, mormente quando o divulgarem-se torna e redunda em filáucia de uns tolos célebres, que seriam invejáveis se as próprias coroas, com que cingem as frontes, lhes não dessem muito que doer com os espinhos escondidos – quero dizer em estilo espalmado: se as próprias mulheres, que lhes dão os triunfos, não fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos vangloriosos o castigo infernal do seu orgulho.” (18)

Civilização
“A civilização beneficia assim as mulheres que não podem adjectivar-se publicamente virtuosas, nem mesmo quando visitam com a esmola a mansarda do doente desvalido. Nesta especialidade, o jornalismo comporta-se louvavelmente. Quando um localista pregoa o donativo de alguns lençóis que opulenta matrona, por variar prazeres de alma, já cansada dos transitórios gozos de outra espécie, mandou a um asilo de lázaros, e diz que a humanidade abençoa a virtuosa senhora, não nos havemos de entalar com este decreto de virtude: a humanidade manda que o engolamos. O localista tem razão: é bom que a palavra virtude sirva de piedoso visco à liberalidade de pessoas, que desejam alguma vez ao lerem-se virtuosas, experimentar a satisfação de se verem ir à posteridade na secção do noticiário.” (18)

Vaidade
“A vaidade levanta o palácio em que se acolhem os desamparados de um tecto de palha e de uma enxerga de folha. A vaidade doura-lhes os frontais do asilo, atapeta-lhe os pórticos, ventila-lhe por janelas de luxuosa alvenaria os dormitórios, tudo lhe magnifica e opulenta em pedra e estofo: tudo lhe dá em desconto das dores da velhice alaceada de enfermidades; tudo, excepto o pão da alma, a doutrina da paciência, a comunhão santíssima, que refaz o espírito quando o corpo desfalece.” (19)

Romance filosófico
“Sinceramente não sei corrigir-me do vício das divagações. Há quem defenda e demonstre que o romance filosófico deve ser assim alinhavado a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então dizem-me que as novelas são tratados de metafísica. Se as minhas derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metafísica! Ser eu, sem dar tino de mim, um escritor subtil, imperceptível, impertinente, medonho, e, acima de tudo, sério! Escritor sério! Quando se agarra a fama pelas orelhas, e a gente obriga a dar pregão da nossa seriedade de escritor, a glória vai procurar os nossos livros sérios às estantes dos livreiros, e lá se fica a conversar delícias com as brochuras imóveis, enquanto a traça não dá neles e nela.

O Universo, e a Humanidade principalmente, ganha muito com os romances sérios: exceptuam-se da Humanidade os editores. Um meu amigo publicou seis volumes de novelas de costumes morais, a ponto de toda a gente dizer que não haviam tais costumes em Portugal. Recebeu muito abraço de umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos filhos a obediência aos pais, aos próximos o mútuo amor, e à Humanidade o temor de Deus. As seis novelas eram glossas aos dez mandamentos. Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguesas, logo que o espírito público se balsamificasse da unção dos seis livros. Volvidos porém uns dous anos, as estatísticas iam delatando em aumento a criminalidade pública. Espanto no meu amigo autor, e desanimação melancólica dos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer que o meu amigo, continuando a escrever por aquele teor e feitio, endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se entortava cada vez mais para eles, recomendaram ao escritor moralista que vendesse a eles romances, e a quem quisesse os sermões. Ora, deu-se o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.” (22-23)

Aldeia
“A aldeia, meu bom amigo – continuou Afonso, voltando-se para mim com solene e galhofeira seriedade –, a aldeia dispensa ao espírito investigador um curso completo de ciências. A poesia do estômago, esta mais que todas poesia humanitária, não se dá nas cidades; lá come-se materialmente, aqui dá-se ao espírito a presidência em todas as matérias assimiláveis.” (27)

Poesia
“O que é a poesia senão aquele estado diáfano e sublimado da alma, que se está engolfando e gozando num invólucro sadio, depurado de ruins vapores, e puro de toda a exalação crassa de um estômago derrancado, azedo e entumecido? Pois hás-de tu saber que um estômago limpo é a fome de todo o saber; e que a ciência construtora dos selectos alimentos do sangue é a que mais de perto se relaciona e ata com a arte de exprimir cadentemente os afectos da alma.” (Afonso de Teive, 27-28)

(Continua)
Amadeu Gonçalves

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Literatura e pintura, Minho

“A gente das cidades pergunta-me em que país do mundo florescem, em Dezembro, bouças e montados.

Respondo que é em Portugal, no perpétuo jardim do mundo, no Minho, onde os inventores de deuses teriam ideado as suas teogonias, se não existisse a Grécia. No Minho, ao menos, se buscariam águas límpidas para Castálias e Hipocrenes. No Minho, a Citera para a mãe dos amores. Nos arvoredos desta região de sonhos, de poemas, e rumores de conversarem espíritos, é que os sátiros, as dríades e os silvanos sairiam a cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a Natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrirem-se à fantasia de poetas.

Mas que flores… quer o leitor saber que flores vestem os calvos e denegridos cerros do Minho, em Portugal. São flores a festões, cachos de corolas amarelas em jardins: é a florescência dos tojais, plantas repulsivas por seus espinhos, alegres de sua perpétua verdura, únicas a enfeitarem a terra quando a restante natureza vegetal amarelece, definha e morre. E desse privilégio como que o agreste arbusto se está gozando soberbamente; pois que vos amostra as suas pinhas de flores, e com os inflexíveis espinhos vos defende o despojá-lo delas.” (11)

“Eu, homem sem família, sem mão amiga neste mundo, há trinta anos sozinho, sem reminiscências de carícias maternais, benquisto apenas de uns cães, que pareciam amar-me com a cláusula de eu os sustentar e agasalhar; eu, que naquele tão festivo dia da nossa terra, não tinha colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um lugar no escabelo, nem parente abastado, que de mim se alembrasse à hora dos brindes com generosos vinhos em lúcidos cristais, eu vendo-me com lágrimas em minha sombra, assim me fora a contemplar a felicidade alheia pelas chãs e outeiros do devoto Minho.

Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa ideia, que se deleitava em vestir de folhagem a árvore nua, e tristemente inclinada sobre o colmado do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no ressaio da horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas alusivas ao nascimento do Deus menino. Diante dos portões gradeados do proprietário rico é que eu não parava nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam alegrias, como em casa do jornaleiro; não sei: o certo era que as paredes da habitação opulenta não deixavam sair uma nota para o hino geral de graças e júbilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos deserdados, o Senhor dos mundos, nascido e gasalhado nas palhinhas de um presépio.

O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho, oscilava nas montanhas do poente, e azulejava as grimpas dos pinheirais, de onde eu, a contemplá-lo, me esquecera da distância a que me alongara da casa hospedeira daquela noite. Transmontando o sol, desceu das cumeadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a confundir-se no fumo das aldeias, a identificar-se com o escuro dos arvoredos. Fez-se um silêncio progressivo e rápido em redor de mim. Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhais rumorejava aquele seu saudoso sonido, que se me afigura sempre a inarticulada toada de mui remontoadas e remontíssimas vozes de mundos que giram nas profundezas do espaço.” (12-13)

“(…) muitas paixões sem faísca de ideia…” (Afonso Teive, 14)

(Continua)
Amadeu Gonçalves

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CASTELO BRANCO, Camilo
Amor de Salvação. Lisboa: Círculo de Leitores, 1989

Fen. do amor
“O leitor folheia duzentas páginas deste livro, e o amor de felicidade e bom exemplo não se lhe depara, ou vagamente lhe preluz. Três partes do romance narram desventuras do amor de desgraça e mau exemplo. A crítica, superintendente em matéria de títulos de obras, querendo abater-se a esquadrinhar a legitimidade do título desta, pode embicar, e ponderar – que o amor puro, o amor de salvação vem tarde para desvanecer as impressões do amor impuro, do amor infesto.

Respondo humilimamente:
Amor de salvação, em muitos casos obscuros, é o amor que excrucia e desonra. Então é que o senso íntimo mostra ao coração a sua ignomínia e miséria. A consciência regenera-se, e o coração, reabilitado, avigora-se para o amor impoluto e honroso. Assim é que as enseadas serenas estão para além das vagas montuosas, que lá cospem o náufrago aferrado à sua tábua. Sem o impulso da tormenta, o náufrago pereceria no amor alto. Foi a tempestade que o salvou.

Além de que a felicidade, como história, escreve-se em poucas páginas: é idílio de curto fôlego; no sentir intraduzível da consciência é que ela encerra epopeias infinitas; enquanto que a desgraça não demarca balizas à experiência nem à imaginação.
Para o amor maldito, duzentas páginas; para o amor de salvação, as poucas restantes do livro. Volume que descrevesse um amor de bem-aventuranças terrenas seria uma fábula.” (9)
(Continua)
Amadeu Gonçalves

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