De Famalicão a Seide, seguindo os passos de Camilo no caminho por ele tantas vezes percorrido, ou seguindo os passos do romancista nos caminhos de papel da sua produção ficcional, é um dos lugares obrigatórios a igreja de S. Tiago de Antas. Foi lá que nós, grupo de professores em formação sobre a obra de Camilo Castelo Branco (Centro de Formação Júlio Brandão de Vila Nova de Famalicão), enquanto admirávamos a fachada gótica, na tarde quente de 16 de Julho, avistámos a chegada de um romeiro, acompanhado de um escravo negro. Era aquele Rui Gomes de Azevedo, o Senhor do Paço de Ninães, que, tantos anos depois, regressava do seu longo exílio por terras de África e de Ásia, para onde partira com o desgosto que Leonor Correia de Lacerda perfidamente lhe causou, ao aceitar o casamento com o primo João Esteves Cogominho. E quando o romeiro, informado pelo abade, seguiu caminho em direcção ao Solar de Pouve, habitado por Leonor Correia de Lacerda, viúva, entrevada e louca, cujo único liame que a prendia à vida era a esperança de voltar a ver Rui e obter o seu perdão, seguimos os seus passos. Junto ao Solar de Pouve ouvimos os gritos de agonia que precederam o último suspiro da fidalga, ao reconhecer Rui Gomes de Azevedo. Derivando da estrada de Ceide, e continuando na rota da leitura do Senhor do Paço de Ninães, fomos a Abade de Vermoim, em cujo cemitério se encontra, segundo Camilo, o túmulo de Leonor Correia de Lacerda, ao lado do de seu odiado marido, João Esteves Cogominho. E, enquanto observávamos as históricas sepulturas, ouvimos, no adro da igreja, um vagir de criança: era aquele enjeitadinho que a tia Bernabé tecedeira encontrou num embrulho, debaixo de uma oliveira, na novela O Comendador; vimos o padre sair da residência, praguejando contra o frio e contra a mãe desnaturada que abandonara a cria; assistimos ao baptismo da criança, que se chamou Belchior e que, muitos anos mais tarde, ali regressou do Brasil, já comendador, para ver a sua amada Maria Ruiva e o seu filho homónimo; assistimos ao emocionante reencontro e à bênção sagrada da união de Belchior com Maria.
Retomado o caminho de Ceide, parámos em frente à igreja; foi o próprio Camilo que saiu ao largo para nos mostrar, em tom de chalaça, nos Ecos Humorísticos do Minho, a inscrição em pedra por cima da porta principal, a imortalizar o autor das obras de reedificação do templo – o mestre pedreiro Malbario…
E dali descemos a um recanto bucólico nas margens do rio Pele, cujas águas sussurrantes nos contaram ao ouvido a história de Maria Moisés, uma das “personagens de ao pé da porta”, segundo Veloso de Araújo (cf. “Camilo em San-Miguel-de-Seide”). De novo na estrada de Seide, seguimos caminho até Ruivães, onde a Casa do Areeiro faz palpitar de realidade as páginas do conto “Aquela Casa Triste”. Ainda em Ruivães, retomámos o caminho da leitura do Senhor do Paço de Ninães, e, junto à quinta da Carvalheira, onde outrora as ruínas do Paço de Roboredo faziam Camilo imaginar o esplendor dos Senhores de Farelães, juraríamos ter visto Leonor Correia de Lacerda dentro do tronco oco da prodigiosa carvalheira que causou admiração ao arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires – pura ilusão, porque da carvalheira, que Camilo diz ainda ter conhecido, já não resta senão o lugar e o nome.
A viagem sentimental à roda da casa de Seide terminou em Landim, em cujo mosteiro terminou também, na imaginação de Camilo, o peregrinar daquele penitente que foi Rui Gomes de Azevedo, Senhor do Paço de Ninães.
Pode viajar à roda do seu quarto o leitor de Camilo, percorrendo, na imaginação, os caminhos de papel da sua maravilhosa ficção; mas, se puder, viaje à volta da casa de Ceide, por essa realidade que Camilo captou e transformou em arte. Assim, esses lugares cobrem-se da aura sentimental e literária que o mestre lhes deu e as páginas do mestre ganham um sentido real e concreto que permanece como um dos encantos maiores da sua obra.
João Paulo Braga
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