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Posts Tagged ‘António Sousa Prates’

De entre todos os órgãos do corpo humano foi certamente o coração aquele que, desde a mais remota antiguidade, maior riqueza de significados simbólicos à linguagem literária ofereceu na expressão dos sentimentos reais ou fictícios do homem. Para não falar dos Egípcios e das culturas hindus, basta recordar que na Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o coração surge como sede da vida intelectual, afectiva e moral. Para os Gregos, Platão, no século V a.C., nele localiza a inteligência, enquanto, no século seguinte, com Erasístrato, o coração converte-se no órgão do amor.
Na Idade Média esse órgão vital do homem, além de lhe servir de sede à vivência lírica, é também a faculdade da memória e da coragem, valores semânticos que, hoje desaparecidos, perduram apenas na etimologia de certas expressões, como saber ou aprender de cor, coragem ou encorajar.
Mas é a expressão do sentir afectivo, em especial do amor, que prevalece a partir da Idade Média, com maior ou menor incidência, consoante a sensibilidade, contribui para definir os códigos temáticos e retórico-estilísticos que caracterizam os períodos literários. E é no Romantismo que o coração atinge o cume da sua vigência como elemento temático-formal da expressão literária.
Ora Camilo Castelo Branco, representando porventura a expressão mais completa dessa estética em toda a literatura portuguesa, e de modo especial na ficção narrativa, oferece inquestionavelmente o exemplo mais rico e variado do consumo semântico e estilístico dessa palavra em toda a história da língua portuguesa. Daí o grande interesse deste estudo do distinto médico cardiologista, Dr. António Costa Gil de Sousa Prates.
Não se trata – claro está – de um estudo literário propriamente dito. Como leitor assíduo de Camilo, o autor quis dar-nos uma espécie de levantamento interpretativo da ocorrência da palavra coração na extensa obra do escritor, fornecendo depois como pábulo suculento os resultados dessa pesquisa a quantos com ele gostam de partilhar o prazer de ler esses textos com mão diurna e nocturna.
E os resultados são vários e compensadores.
Em primeiro lugar permitem caracterizar os cenários do palco em que desenrolam, sob as múltiplas expressões da virtualidade narrativa, os dramas dessa “comédia humana”, especialmente na contraposição entre os direitos da materialidade da burguesia, mais ou menos boçal, enriquecida no comércio dos balcões portuenses, muitas vezes à custa da labuta dos brasileiros de torna-viagem, e os ideais da sensibilidade, sobretudo feminina, alimentados pela leitura de poesia de melhor ou de pior qualidade.
Em segundo lugar funcionam com significativa frequência para exprimir um dos estigmas mais importantes da mundividência romântica, como é o fatalismo através do qual as personagens sentem a vida, oferecendo-lhes para ele, não apenas a sede psicológica e emocional como os símbolos indispensáveis à sua mais adequada expressão.
Depois, permitiam-lhe caracterizar, pelo estilo, as personagens, com as cores da sua hábil paleta estilística, que se movimentavam em cena, graças à imaginação do escritor, não raro alimentada com a linguagem que ele próprio tão bem conhecia e usava no seu quotidiano biográfico.
Em terceiro lugar identificam com marca inconfundível o seu estilo, quer quando se serve deles para construir os diálogos, quer quando assume as suas funções de narrador, seja qual for o estatuto escolhido para as desempenhar. E, através desse uso, domínio estrito das personagens, consegue alcançar uma excelente definição de todo um estilo de época, assim contribuindo definitivamente para a definição periodológica do Romantismo, momento por certo tão alto da criação literária em Portugal que as suas repercussões se prolongaram em ondas sucessivas até ao Modernismo, sobretudo através de Decadentistas e Simbolistas, e no qual a prosa camiliana tanto relevo alcançou.
Estes são apenas alguns motivos de interesse deste livro, que doravante não poderá deixar de figurar nas estantes de qualquer camilianista.
Aníbal Pinto de Castro

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