Foi no Tribunal da Relação do Porto que Camilo Castelo Branco escreveu em duas semanas dias uma obra prima da literatura universal – o romance “Amor de Perdição”. Vale a pena conhecer os bastidores desta história…
1.
Casa da Suplicação
Este edifício alberga hoje o Centro Português de Fotografia e um importante museu de máquinas fotográficas . Fundado por Filipe I (II de Espanha), nas cortes de Tomar de 1583, correspondendo a uma velha aspiração dos portuenses e das gentes do Norte. D. João I havia criado a Casa da Suplicação que funcionou como o mais alto Tribunal até que, em 1834, foi substituído pelo Supremo Tribunal de Justiça. O mais alto magistrado deste pretório era designado por Regedor das Justiças e devia ter qualidades que, ainda hoje podem servir de padrão aos juízes. Estipulavam as Ordenações que, relativamente ao Regedor, «deve procurar-se que seja um homem fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente e de muita autoridade, e letrado se for possível; e sobretudo tão inteiro que sem respeito de amor, ódio ou perturbação outra do ânimo possa a todos guardar justiça igualmente. E assim deve ser abastado de bens temporais, que sua particular necessidade não seja causa de em alguma cousa perverter a inteireza e constância com que deve servir e assim deve temperar a severidade que seu cargo pede, com paciência e brandura no ouvir as partes, que os homens de baixo estado e pessoas miseráveis achem nele fácil e gracioso acolhimento, com que sem pejo o vejam e lhe requeiram sua justiça, para que suas causas se não percam ao desamparo, mas hajam bom e breve despacho».
2.
“Arrasar tudo isto”
Desde o século XV os reis eram pressionados no sentido de aumentarem o número de tribunais de recurso. O problema foi discutido nas cortes de 1472-73 (D. João II). As razões postas baseavam-se na insuficiência das duas casas de justiça que havia, especialmente insuficiência territorial, pois as duas que existem «ficam tão remotas dos extremos do reino que se um homem cai em cadeia ou lhe vem demanda, logo se julga perdido, porque hão-se passar dois, três, quatro anos, e mais, antes que os feitos tenham fim; e, se é preso por delito grave, e tem a justiça por parte, jaz na prisão até fugir dela ou morrer aí» (Gama Barros). O Rei não acedeu, preferindo determinar que a Casa da Suplicação se tornasse itinerante. Em vez disso, concedia «alçada» a quem entendia para julgar «in loco», sem apelo nem agravo, facto que, manifestamente, desagradava. Filipe I, ciente de que tornava uma medida de agrado geral para a população nortenha, acedeu às justas solicitações dos portuenses.
A Cadeia da Relação, justificando o nome, serviu de cárcere até à inauguração da actual cadeia de Custóias, em 1974, após a Revolução de Abril. Os presos eram distribuídos pelos diversos pisos, conforme a sua posição social, um pouco à guisa do inferno de Dante. Nos andares de cima, os mais categorizados, ali se situando os catorze “quartos de malta” (celas individuais). Nos “quintos dos infernos”, no rés-do-chão, os mais pobres, a ralé, onde os detidos se amontoavam em amplos salões com piso de pedra, as enxovias, com catres imundos em redor, os quais, durante o dia, eram levantados por meio de dobradiças, ficando empinados junto às paredes. Essas celas comuns eram conhecidas pelos nomes de Santo António e de Santa Ana, as destinadas a homens, de Santa Teresa para mulheres, de Santa Rita para menores, de S. Victor e o Segredo para castigos. Havia uma oficina denominada Senhor de Matosinhos. A imundice das enxovias tinha o cimento dos anos e das sucessivas gerações de presos. O cheiro das latrinas era nauseabundo. O ambiente soturno e triste, o que levou a exclamar, após uma visita, em 1861: “É preciso arrasar tudo isto!”.
3.
Zé do Telhado
Nos seus soturnos ergástulos albergou muitos presos, alguns célebres: José do Telhado, Camilo Castelo Branco (cela n.º 12). Nesta mesma cela esteve preso o desembargador Gravito, antes de ser enforcado, juntamente com mais nove liberais, em forca instalada na actual Praça da Liberdade, por decisão dos miguelistas. Mais tarde, esteve ali também detido o banqueiro Roriz. Obras recentes preservaram-na. Ana Plácido, então amante de Camilo, esteve instalada num corredor porque não havia celas para senhoras de sociedade. O Duque de Terceira permaneceu, durante algum tempo, na cela n.º 8. O médico que envenenou familiares, Urbino de Freitas, ocupou a n.º 13. João Chagas, por via do seu republicanismo, estava detido nesta cadeia quando eclodiu a abortada revolta de 31 de Janeiro. Os processos relativos a Camilo, Urbino de Feitas e Zé do Telhado, encontram-se no pequeno museu judiciário instalado no Palácio da Justiça do Porto, onde também funciona, actualmente, o Tribunal da Relação, que já tinha saído da Cadeia para se albergar na Rua Formosa, onde, depois, funcionou o Arquivo de Identificação e, agora, está a sede da Liga dos Combatentes.
É interessante supor Camilo Castelo Branco, de imaginação flamejante, a resmungar na sua cela n.º 12, como leão enjaulado, por ter cometido crime que, agora, já nem o é: relações sexuais com mulher casada. Só o adultério da mulher era punido. O homem casado podia impunemente relacionar-se com mulher que não fosse casada. Sendo-o, como era Ana Plácido, então poderia ser punido, com pena grave, extensível a ambos. Aguardaram, durante mais de um ano, presos o julgamento em que o júri não considerou provados os factos e, por isso, foi proferida sentença absolutória. No cárcere, Camilo continuou a escrever e, no silêncio do último piso, onde se situava a cela com janela para nascente – é a que se situa mesmo por baixo do ângulo esquerdo, de quem está virado para ele, do frontão -, o que mais o irritava era o barulhar ritmado e invariável dos passos do carcereiro sobre as tábuas rangentes do sobrado. De noite, nas longas lucubrações, convenceu-se de que o marido enganado, Pinheiro Alves, teria subornado um outro preso para o matar. Confidenciou esse temor a outro preso que também ali se mantinha, José do Telhado. Este sossegou-o, dizendo-lhe: ” Esteja descansado. Se aqui alguém tentasse contra a sua vida, três dias e três noites não chegariam para enterrar os mortos”.
Talvez a aura romântica que se havia de formar à volta do célebre salteador, emergisse também do reconhecimento do escritor pela protecção dispensada. Camilo encerrou o seu livro “Memórias do Cárcere”, desabafando: “Fecham-se as memórias. Eu devia ter dito porque estive preso um ano e dezasseis dias. Não disse, nem digo, porque verdadeiramente ainda não sei porque foi.”
Claro que sabia. O que poderia não entender era o rigor dos preconceitos vitorianos da época, aos quais, afinal, surpreendentemente, o Tribunal se não vergou.
Fonte: Guilherme Pereira