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Posts Tagged ‘Júlio Brandão’


«Gigante da paixão e do sarcasmo».
Júlio Brandão

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Durante os 27 anos que o grande escritor residiu em S. Miguel de Seide, que enriqueceram extraordinariamente a sua obra prodigiosa, – desde o Amor de Salvação, primeiro livro ali escrito, e das Novelas do Minho, até aos volumes da sua última «maneira», Brasileira de Prazins, Maria da Fonte, Vinho do Porto, General Carlos Ribeiro, Vulcões de Lama – Camilo poucos dias permanecia em casa. Sobretudo na última década.
Doente, nevropata, com os sintomas crescentes da cegueira que o prostrou – jornadeava constantemente para o Porto, para Braga, para o Bom Jesus do Monte, para a Póvoa, para Lisboa… Corria todo o país, mas, como grande autóctone, nunca passou as fronteiras. E foi assim que o portentoso homem, de terra em terra (apesar das suas amarguras cruciantes), continuou a armazenar, como fizera sempre, a farta colheita de vocabulário, com que opulentou a língua.
Além do Minho, que considerava «a província mais clássica de Portugal», Camilo ia entesourando em toda a parte – não falando agora da sua estonteante cultura vernácula – os regionalismos, as locuções populares, que aproveitava com bom gosto nos livros, e que lhe davam tanta vez um sabor e uma graça incomparáveis, com zumbidos de abelha em flor silvestre. Ele foi o mais feliz, o mais abundante neologista de termos que respigava no povo, que lhe enfeitiçavam a prosa inconfundível e lhe esmaltavam os diálogos. Nunca desaproveitou a frescura da gleba, tão certo é que as formas nativas da linguagem vêm do povo, que as deixa ao esmeril erudito. Sempre, como já escrevi, por entre os nobres loureiros clássicos, erguem-se nos seus livros os ciprestes românticos e vêem-se lindamente floridos os espinheiros bravos. A par das florações do mais famoso glossário que ainda houve, riem-se as cravinas, o trevo, as madressilvas do povo…
Não veremos, contudo, nas suas obras formas campanudas ou pedantes – de que se riu à farta, em páginas imortais. Foi um milionário com equilíbrio e gosto – que marcou sempre a sua arte de composição literária. Na estética da língua, teremos sempre de contar com o escritor genial, que soube modelar ou cinzelar nas obras, como se fosse em metal ou mármore, a «vera efígie» dum povo. E isto não é pouco: as nações vivem indelevelmente na sua língua escrita, onde lhes fica esculpida a fisionomia, com o seu espírito e os reflexos da sua alma…
Castilho tinha razão quando lhe escrevia: – «Ainda que desaparecessem todos os clássicos, a sua obra ficaria contendo todos os tesouros da língua.» E noutro passo: – «Sim, senhor! é mestre e cem vezes mestre; e de todos os nossos clássicos nenhum há que eu leia com tamanho gosto e aproveitamento.» A tais palavras e a muitas outras de rasgado entusiasmo, responde elegantemente Camilo: «Continua V. Ex.” a ensinar-me português, e diz que lhe enriqueço o seu dicionário. A meu ver, V. Ex.ª não conhece o que é seu: dá-me as jóias, e, quando eu lhas devolvo, entesoura-as em meu nome.»
(In Recordações dum Velho Poeta)

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