“O Processo”, de Orson Welles (1962)
Por Valter Hugo Mãe
Nenhum autor me marcou mais do que Franz Kafka. Nenhum outro, como ele, me convenceria da maravilha da escrita feita de ritmo e meticuloso cuidado com a linguagem. Com Kafka não passei por nenhuma página aborrecida e o cansaço era só possível pela gula com que o lia, atravessando as horas até que o corpo divergisse, muito malcriado, daquilo que era o ensejo da minha cabeça. Com a leitura de textos como «A Metamorfose», «O Castelo», «O Covil» ou «O Processo», eu encontrei no universo de Kafka uma constante que problematiza o real mas que nos impele para um certo fantástico empolgante: em todos os livros deste autor está em causa a subjugação do indivíduo a um poder que não dá a cara, assistimos a uma manipulação bizarra do indivíduo que se vê enredado numa teia de acontecimentos que ultrapassam largamente o seu entendimento e que se resolverão por razões exteriores à sua vontade ou empenho. O que Kafka uma e outra vez questiona é o poder, esse ser que se anima por uma qualquer duvidosa legitimação, uma legitimação que se perde no tempo e na burocracia, e que persegue uma dada personagem colocando-a em crise em relação a tudo quanto tinha como estabelecido. Por norma, encontramos o cidadão comum que, sem perceber porquê, e para satisfação de uma necessidade que o sistema sinistramente desenvolve, é colocado em xeque e precisa, por isso, de se repensar e defender.
Exactamente o sinistro, como ambiência de um secretismo grande, ou sentimento de uma fundamental incompletude, é a tonalidade geral do trabalho de Kafka, e leva quase sempre à construção de uma narrativa com suspense que convence o leitor mais incauto de que tudo se trata de hipóteses fantasiosas do mundo, mas também avisa os melhores leitores do perigo da sociedade quando já não obedece a qualquer princípio de efectividade e o sistema se desliga dos preceitos axiológicos e se perde em retóricas sobre si mesmo e numera o indivíduo e o dá como estatística e mais nada. Todos os sistemas deviam ser legitimados pelo tamanho do homem, deviam ter o tamanho do homem mas, ao invés disso, alguns parecem agigantar-se criando uma mesura que já é relativa à máquina, às necessidades específicas da máquina, como um ser vivo novo e cada vez mais autónomo, no qual o homem surge como combustível e nunca como objectivo.
A questão de Kafka é visionária e perdura mais e mais actual, anunciando, de algum modo, ao futuro, aquilo de que não se vai livrar. Essa capacidade de criar lucidez a partir da literatura é o milagre mais absoluto da escrita e da criatividade de um autor; essa glória de poder recriar a realidade num livro que explique tanto do até ali foi inexplicável, juntando num mesmo discurso o isco da trama e o esplendor do pensamento revelador acerca de todos nós. Mais ainda porque Kafka o faz com recurso a uma escrita limpa, inequívoca – os equívocos, ou sua alusão, ficam todos para o lado semântico do texto – que pretende posicionar-se como uma técnica quase exacta, um discurso como profundamente técnico e consciente, para ser capaz de manter o foco sobre o delicado assunto de que trata. A escrita de Kafka é escorreita e ritmada pela descrição sem rodeios de cada pormenor, uma descrição pelo essencial da acção, sem se perder no embelezamento ou na deambulação por moralismos bacocos. O que lemos em Kafka diria ser um discurso sem atrito, feito para a comunicação nítida do que, por sua vez, é o mais insondável da sociedade, do que, por sua vez, é o atrito mais predador da sociedade.
Quando Orson Welles pega num texto de Kafka – e Welles é perfeito para Kafka – fá-lo desde logo confiante de que toma em mãos o melhor possível e termina inclusive o filme para se convencer, para sempre, que este seria a sua obra-prima mais absoluta. Quando Welles toma o texto em suas mãos leva-o a criar outros sentidos à luz do que seria a realidade universal no início dos anos 60, já depois de duas guerras que trariam ao mundo o fim de uma ingenuidade que, magnificamente, nunca fez parte de Kafka. O livro terá sido escrito em 1919 (publicado depois, por decisão de Max Brod, em 1925) e o filme é de 1962. Neste tempo eu diria que o trabalho de Kafka ganhou evidência, como se fosse calmamente assistindo à confirmação contínua das suas percepções incómodas sobre a alma humana. Talvez nem Kafka tivesse entendido o quanto entendeu o futuro, e talvez por isso lhe tenha dado a perigosa loucura de pedir ao amigo que destruísse quanto havia escrito e se mantinha ainda inédito. Max Brod, que não é um génio, foi genial pela sorte de ter contrariado a vontade do outro assim oferecendo ao mundo uma das obras mais fascinantes de sempre.
E Welles toma decisões sobre a trama para posicionar o seu filme de um modo ligeiramente mais definido do que o livro que lhe deu origem. Decisões que vêm fazer de Joseph K. um indivíduo acossado que acaba condenado de um modo mais desprezível do que Kafka escolheu, acentuando sobretudo a covardia dos homens que o executam, a covardia dos grandes erros do homem que, pelas duas guerras passadas, mostrou como se podia manter as mãos cinicamente limpas eliminando o adversário.
Este livro e este filme não podem deixar de estar nas preocupações de quem espera da sociedade uma responsabilidade protectora; são fundamentais para nos enriquecermos enquanto cidadãos, metidos debaixo de Estados de Direito, tantas vezes sem noção alguma do que justifica a aceitação generalizada da existência de um Estado e do que justifica, importantemente, a imposição a todas as pessoas de um sistema normativo. E é bom, para que a conversa se sintonize, que recordemos desde logo que justificar é denotar o aspecto justo de algo, fazendo com que a pergunta, nas suas variações, seja: o que torna justa a existência de um Estado? O que é um Estado justo? O Direito é justo em que medida? E, o que é a Justiça?
valter hugo mãe