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Posts Tagged ‘Pires Cabral’

Hoje em dia não há terrinha por esse país fora que não seja ou queira ser capital de alguma coisa. Não precisamos de sair do âmbito de Trás-os-Montes e Alto Douro: Vila Pouca de Aguiar capital do granito, Vinhais do fumeiro, Valpaços do folar, Vila Real do automobilismo, Mirandela da alheira, Armamar da maçã, Resende da cereja, Mogadouro do míscaro, Vila Nova de Foz Côa da arte rupestre, Freixo de Espada-à-Cinta da amendoeira florida… Porque não há-de Macedo de Cavaleiros reivindicar o título de capital da caça, a substituir o tradicional e pejorativo apodo de “concelho da fouce”, que perdeu irremediavelmente actualidade desde que as suas trigueiras e centeeiras se encontram em permanente e intransitivo pousio?
De facto – mesmo sabendo todos nós o quanto a caça escasseia em toda a parte nos dias que correm – ainda é possível pensar na Serra de Bornes como uma coutada onde é sempre possível deitar abaixo duas perdizes ou encontrar-nos com alimária maior saída de alguma brenha: javali ou texugo, ou mesmo lobo. Ah, a Serra de Bornes, a maior melgueira de perdizes e lebres de toda a província… Até eu, que sempre tive óbvias dificuldades em acertar com uma carga de chumbo num carro de bois carregado de feno, eu, aos meus dezassete, dezoito anos, pegava na espingarda de meu Pai – esse sim, caçador a sério, até que a chumbada de um colega lhe roubou a luz do olho direito com que fazia pontaria – e ala para o Alto da Corda, onde sempre topava perdizes em abundância – bons tempos! – e espalhava graeiros a esmo, chegando mesmo a cometer a proeza de abater uma!
Não foi sem razão que Dona Maria Pinto de Azevedo abriu aqui, nos longínquos anos 50 do século passado, a sua Estalagem do Caçador. Nem era sem razão que Miguel Torga, o médico-escritor-caçador, vinha às vezes até estas paragens nas suas andanças venatórias. E também não é sem razão que um dos mais curiosos monumentos da cidade seja um conjunto escultórico, ali à saída para Mirandela, representando um caçador com os seus cães, mais umas quantas espécies cinegéticas de notável fidelidade e movimento, considerando o material utilizado: o ferro-velho. Como não é sem razão, finalmente, que em Macedo se realiza anualmente uma Feira da Caça.
Pois, sendo assim, é também de justiça e não sem razão que seja Macedo de Cavaleiros e não outra cidade a editar a primeira antologia, digna desse nome, sobre caça na literatura trasmontana.
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Entre 1984 e 1990 realizaram-se todos os anos, em Vila Real, as Jornadas Camilianas, precedidas, em 1983, de um Junho Cultural que já prestava a Camilo uma atenção especial, prenunciando as Jornadas, e seguidas de uns Passos de Camilo, em 1991, que coroaram o ciclo.
Foram organizadas conjuntamente pelos Serviços Municipais de a Cultura e Círculo de Estudos Camilianos (coordenados por António Manuel Pires Cabral, sendo na altura presidente da Câmara o Dr. O Armando Moreira) e pela Região de Turismo da Serra do Marão (à época presidida por Elísio Amaral Neves), que algumas vezes agregaram a si o Arquivo Distrital de Vila Real (dirigido por Manuel Silva Gonçalves) e asseguraram a colaboração da Câmara Municipal de Ribeira de Pena (com relevo para a acção de João Leite Gomes e Francisco Botelho). Foi um bloco de nove acções, portanto, em que cada qual rivalizou em interesse com a anterior. Diversos números da Revista Tellus arquivaram os textos das comunicações produzidas e constituem hoje uma referência bibliográfica camiliana fundamental.
As Jornadas Camilianas foram, no seu conjunto, um dos e acontecimentos culturais mais importantes jamais realizados em Vila Real e, atrevemo-nos a dizer, no País. A elas se deve um reacender do interesse pela figura do nosso primeiro romancista, cujo estudo potenciou. Deixaram memória indelével entre aqueles que algum dia nelas participaram, não só pela profundidade das teses nelas defendidas, como pela qualidade dos participantes (quer dentro quer fora da esfera universitária), pela variedade das abordagens, não esquecendo a sua criatividade (bem documentada no material publicado neste caderno), a sua irreverência e os imorredouros laços de amizade e camaradagem criados entre as pessoas que nelas participaram.
De algum modo, foi esta combinação entre peso científico e abordagem lúdica que as tornou únicas e irrepetíveis. No intervalo entre as sessões de trabalho, havia sempre algum momento de descontracção e humor, sempre referido a Camilo e por vezes agarrado à actualidade, como o desvio do autocarro (referência actual) pela quadrilha de Luís Meirinho (referência camiliana) ou a rapto pelas Brigadas JL (referência actual) do (imaginário) camiliano romeno, Prof. Calistrat Radulescu.
De tudo isso – do sério e do jocoso – falam eloquentemente as imagens que se arquivam (admitindo poder faltar uma ou outra da mais de uma centena de publicações produzidas), para memória futura, nas páginas [destes Cadernos Culturais da Câmara Municipal de Vila Real].
Pires Cabral

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A cada um seu Camilo, está visto. Na verdade, a obra do nosso escritor é um mundo tão vasto e proteico que dificilmente se poderá encontrar alguém que o não admire e aprecie em alguma das suas facetas. Há quem prefira nele as histórias de amores contrariados e lágrimas. Há quem prefira as páginas de sarcasmo ou, quando em maré de benevolência, de ironia – de toda a maneira, troça implacável. Há quem prefira o manejar do varapau de polemista invencível. Há até quem prefira o coca-bichinhos de miuçalhas históricas e genealógicas. Há sempre um Camilo que nos diz qualquer coisa.
Pessoalmente, aprecio-o e admiro-o visto de qualquer ângulo – tirante, confesso, o da poesia. Tanto me comovo com o Amor de perdição, como me divirto com a Queda dum anjo, como pasmo da mestria narrativa das Novelas do Minho ou de A Brasileira de Prazins, como passo duas horas entretidas com as suas obras ditas menores, tipo Cavar em ruínas ou Cousas leves e pesadas.
Mas obviamente há sempre um livro de Camilo que, por um motivo ou outro, nos fala mais. Às vezes nem nós sabemos exactamente porquê. O certo é que fala e prende. Acontece-me isso com Maria da Fonte. É como se sabe uma obra simultaneamente de reminiscências históricas e de polémica contra um outro livro, aparecido em 1884, com o título de Apontamentos para a História da Revolução do Minho em 1846 ou da Maria da Fonte, da autoria do ultramontano Padre Casimiro José Vieira, que a si mesmo se intitulava «defensor das cinco chagas e general das duas províncias do norte» e que – Camilo o cita com ironia – «acaudilhou trinta mil homens e abalou por duas vezes o trono».
O padre é ao mesmo tempo mitómano e megalómano. Reescreve a história ao sabor e à medida da sua auto-estima e do seu ódio aos pedreiros-livres. Claro que Camilo reduz metodicamente a cisco as patacoadas do padre, usando armas que tinha sempre à mão de semear: vigor de raciocínio e de argumentação, segurança nos dados históricos, cultura vasta e vastas leituras, sarcasmo e ironia em doses equivalentes.
É impossível ler o livro sem espirrar aqui e ali frouxos de riso (expressão bem camiliana) à custa das bordoadas com que Camilo deslomba (outra expressão bem camiliana) o padre Casimiro. A técnica usada é bem ao jeito do nosso polemista e deu bons resultados em ocasiões anteriores: reduzir os dislates do adversário a estilhaços e brincar depois com eles, por vezes quase até à crueldade.
A Maria da Fonte termina com um “Pós-escrito” que constitui, a meu ver, uma das páginas mais admiráveis de Camilo. Mantém o tom geral do livro, ora sarcástico, ora irónico, mas tempera-o agora de severidade e indignação. Ainda não li em parte alguma – salvo talvez em A velhice do Padre Eterno, em todo o caso num registo diferente – um requisitório tão enérgico e tão sentido contra um certo clericalismo sectário e de vistas estreitas como acontece ser o do padre Casimiro, que acaba por não distinguir entre política e religião e vaticina que todos os adversários hão-de dar «pulos no inferno». O “Pós-escrito” é uma cúpula primorosa para as duzentas e tal páginas do livro. Termina assim:
«[…]As modernas angústias do homem que chama os deuses à imitação do terror antigo que os criara, são sagradas e tamanhas que é pouco menos de infame afrontar com vitupérios o incrédulo atormentado pelo seu materialismo. É isso a esponja chegada aos lábios desses Cristos que se dilaceram nas presas da sua dúvida para se resgatarem pela morte. Se não pode compadecer-se, padre, seja ao menos egoísta. Arranje o paraíso eterno da sua pessoa, e deixe os ateus, deixe-os padecer e morrer. Não lhes faça pressão crudelíssima nos espinhos da sua coroa, injuriando-os porque eles não podem crer que haja um deus a contemplar, com a impassibilidade de um Nero divino, as suas criaturas estorcidas entre as labaredas do incêndio que Sua Majestade Suprema assoprou sem ter primeiramente consultado a vontade das vítimas. Cale-se, padre, por honra de Deus, se o acredita!»
Pires Cabral

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