
Não é só ler até adormecer na poltrona, há também que visitar os lugares literários, escreveu um dia o grande contista do Douro, João de Araújo Correia, que foi também grande camilianista. Por isso lá fui a Seide, onde há anos não ia. A casa tem agora como complemento o centro cultural projectado pelo arquitecto Siza Vieira, do outro lado da estrada, de que destaco a perfeita implantação e o excelente auditório. Pena é que não tenha sido possível fazer uma ligação subterrânea entra as duas casas, até porque a via que as separa tem um trânsito intenso. O moderno não afecta o antigo. O que a ambos afecta é o mar de casas de um mau gosto atroz, que se alonga ao longo das vias, como praga imparável, devoradora das ramadas e dos «pinhais gementes», que são agora pequenas ilhas no mar de pedra e cal.
A casa de Camilo encontra-se em primoroso estado de conservação. Logo à entrada o monumento-obelisco mandado erigir por Ana Plácido em honra de Castilho e dos seus discípulos: Tomás Ribeiro, Vieira de Castro, Eugénio de Castilho e Camilo. Eça e Ramalho Ortigão também vieram a Seide prestar homenagem ao Mestre, não se sabe bem em que data, mas não tinham alcançado ainda, por essa altura, o estrelato das letras. Também se sabe que Camilo ofereceu mel a Eça, que logo fez uma boutade, ao declarar que julgava que o mel só existia na literatura!… Ramalho aproveitou o episódio para escrever que Eça era por essa altura muito ignorante das coisas da Natureza…Não nos espantemos. Também João Gaspar Simões, o grande biógrafo do autor d’Os Maias, escreveu o mesmo, só porque lhe apanhou ao amigo esta estranha expressão: «plantar saladas». Imagine-se! Como se não fosse possível «plantar saladas»! O que o grande biógrafo de Eça de todo ignorava, é que salada é sinónimo de alface (qualquer dicionário o averba) e que, por esse motivo, a expressão é absolutamente correcta!…Também ignorava a enormíssima riqueza das referências de Eça às coisas do mundo vegetal…
Voltemos todavia à Casa de Camilo. Tínhamos já referido o monumento a Castilho. Avancemos em direcção à casa. À nossa esquerda, ainda, fica o mirante de Ana Plácido, a dar para o caminho, onde ela, ao que consta, em conversa com as gentes da região deve ter tido conhecimento de muita historieta que decerto terá transmitido a Camilo. Depois a casa, de onde sobressai a acácia de Jorge que nos faz lembrar o poema onde Camilo pede que o chamem quando essa árvore florir…
A «casa assombrada» de Seide nada tem de lúgubre, tão airosa e asseada se nos apresenta, no seu feitio típico do Minho rural. E no entanto, quantos dramas não presenciou, dos actos de loucura de Jorge ao suicídio de Camilo! Do seu mobiliário, o mais evocador será porventura a secretária de dupla face, de amplas proporções, que ocupa a sala onde permanecem cerca de 800 livros que pertenceram à sua biblioteca. Depois as conhecidas imagens de Ana Plácido que, já idosa, se parece, muito curiosamente, com Ana de Castro Osório, a namorada de Camilo Pessanha. Outros retratos vão surgindo, por exemplo, os destes casais: Vieira de Castro e Carolina, José Augusto e Fanny Owen, Nuno e Isabel. Todas eles imagens de tragédia…e das grandes! A jarra que esteve no túmulo de Vieira de Castro, em Luanda, ocupa agora uma vitrina da cave. Também lá está um pequeno revólver, mas não o de Camilo, que permanece na Irmandade da Lapa, no Porto, que também possui o seu tinteiro de dois depósitos. O revólver autêntico é mais pequeno e mais tosco. O seu cano andará à volta dos 3 cm. De baixo calibre, é a arma típica dos suicidas pobres, que a compram por dez réis de mel coado, sem se lembrarem que tais armas, sem capacidade para estourarem de vez com a mioleira, podem infligir terríveis, prolongadas agonias! Assim é que Camilo, tendo desfechado um tiro sobre o parietal direito, só veio a morrer uma hora e quarenta e cinco minutos depois, sem que tenha proferido uma só palavra.
Já de saída, no portal, acode-nos à mente o hilariante caso da compra de um burro, por receita médica, que Camilo pediu ao seu amigo Neves e Melo, de Coimbra. A carta em que acusa a sua recepção assim reza: «Cá está o onagro. Não o posso ver, porque estou de cama com reumatismo; mas ouço-o roncar violentamente. Desde Famalicão até aqui, não obstante ter passado mal a noite, revelou fúrias lascivas, donjuanescas, a cada fêmea que encontrava. Logo que chegou, investiu para dois garranos que tenho. O diabo tem dentro dele o que quer que seja do M. de V. Parece mesmo um cristão! Meu filho Nuno veio dizer-me à cama que não consentia que eu o montasse (o burro), enquanto lhe durasse a crise erótica. Assim farei, para não ser vítima de paixões, que me escangalharam a mim, sem ser de todo burro.» […]
Evoco também, por fim, a irrequietude do autor d’O Esqueleto, que não parava em parte nenhuma, mas que nesta casa teve, apesar de tudo, durante 25 anos, a felicidade possível, e não pequena, – não obstante todos os seus queixumes, – aquela que é dada aos grandes criadores: o prazer da criação e a consciência de deixarem para a posteridade algo de imperecível.
A. Campos Matos
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