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Afonso de Teive
“Crer que o bem-estar da alma procedia de uma brutificação dela mesma, e que o encontrar esse bem obrigava a desatar-se a gente da convivência de sujeitos policiados, de mulheres inspiradoras e das magnificências da arte, enfim, de tudo que todos buscam sofregadamente, parecia-me absurdeza, e falsificação no carácter de Afonso de Teive.” (28)
Ceide
“Não longe da obscura paragem de Afonso de Teive, à margem do córrego chamado Pele, riacho que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em letra redonda, assentei eu a minha tenda nómada. A minha tenda são uns vinte volumes, um tinteiro de ferro e um cabo de pena de osso, que me deram noutro ponto do mundo, onde há quatro anos assentara também a minha tenda – ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu sestro vagabundo: era no ano do Senhor de 1860, nos cárceres da Relação do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não impedia que esta minha tão querida pena, tão amiga confidente daquelas trezentas e oitenta noites – de Janeiro todas, que lá dentro dos congelados firmamentos de pedra reina perpétuo Inverno, e giam as abóbadas, não sei se lágrimas, se sangue, se água represada nos poros do granito –, não impedia, vinha eu dizendo, que a minha pena, com o seu incansável fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos da alvorada me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar de graças ao Senhor, e o confessionário onde abri minha alma ao perscrutar do anjo providencial que me dava a unção dos atletas e dos grandes desgraçados para mais afrontosos e excruciadores suplícios.
Os meus vinte volumes, e o meu tinteiro de ferro, estão hoje sob o tecto gasalhoso de uma alma que eu noutras eras encontrei na minha. Não sei há que séculos isto foi, nem que congérie de abismos nos separam para sempre. Parei aqui, porque ainda aqui, há tempos, se me figura rediviva a imagem do passado, ainda aquela alma se me hospeda no coração em instantes de sonhos do Céu, ainda a pedra tumular das afeições, caídas à voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a saudade é ainda um afecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptível que o passado nos herda.
A casa onde vivo, rodeiam-na pinhais gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soído é a linguagem da noite que me fala: parece-me que é voz de além-mundo, um como burburinho que referve longe às portas da eternidade. Se eu não amasse de preferência o sossego do túmulo, amaria o rumor destas árvores, o murmúrio do córrego, onde vou cada tarde ver a folhinha seca derivar na onda límpida; amaria o pobre presbitério, que há trezentos anos acolhe em seu seio de pedra bruta as gerações pacíficas, ditosas, e incultas destes selvagens felizes que tão iluminadamente amaram e serviram o seu Criador. Amaria tudo; mas amo muito mais a morte.
Aqui, se Deus se amercear de mim, embargando o passo ao anjo exterminador, que contínuo me assalteia os áditos do meu éden, de quinze dias, aqui escreverei, com quanta fidelidade a memória me sugerir, a narrativa que Afonso de Teive me fez.” (32-34)
Camilo, Deus e os homens
“Não sei de que futuro Abril do meu porvir me veio esta manhã um bafejo aromático de flores, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace arcanjo do contentamento. Passou o núncio misterioso, passou depressa, mas o meu espírito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus imenso que na imensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciência repousada, prelibações de bem-aventurança, e honrada aliança com os homens.” (34)
Mulher romântica (Teodora, Conventos)
“Teodora, com dous meses de convento, desenvolveu-se e granjeou ciência da vida que não alcançaria em dous anos de aldeia, da sua solitária aldeia, onde tinha apenas aves, flores e estrelas, a segredarem-lhe iniciações para amor. No convento, as prelecções eram menos vagas, e mais acomodadas à capacidade das educandas. É certo que as mestras não leccionavam ternuras; mas o zelo, com que elas vedavam o pomo, dava a desconfiar que as precautas religiosas lhe tinham saboreado o travor, a não ser que o desdenhavam à míngua de dentes incisivos com que entrassem na casca daquele execrável e tão convidativo fruto de Pentápolis.
Com menos de quinze anos, Teodora completou o exterior de suas graças e o interior do seu espírito. A beleza sabia ela já quantas invejas lhe ganhava entre as condiscípulas, quantas intrigas, quantas repreensões da mestra, à conta do muito enfeitar-se e remirar-se ao espelho. Não importava. A morgadinha da Fervença gostava de ser bela, de ser invejada e perseguida das inimigas, com condição e ressalva de ser admirada pelos galanteadores das suas perseguidoras. Enquanto ao espírito, o saber precoce de grades adentro igualou-a, se não antes avantajou-a muito ao estudantinho de Ruivães que, contra toda a natureza e arte, em colóquio amoroso ficava muito aquém de Teodora, e saía do locutório admirado da esperteza palavrosa da morgadinha.” (37-38)
Literatura, dimensão moral
“Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida real, umas saídas muito desgraçadas ou irrisórias! Ainda bem, para desdouro dos livros desmoralizadores, e luzimento de outros livros de sã moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.” (42)
Mundo
“A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.” (42)
Fen. do amor (cura do amor)
“(…) a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstrigente de uma lágrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuráveis são os que desabafam em rancorosas explosões.” (44)
Morte
“(…) a morte é portelo que todos temos de passar.” (46)
(Continua)
Amadeu Gonçalves
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