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Literatura e pintura, Minho
“A gente das cidades pergunta-me em que país do mundo florescem, em Dezembro, bouças e montados.
Respondo que é em Portugal, no perpétuo jardim do mundo, no Minho, onde os inventores de deuses teriam ideado as suas teogonias, se não existisse a Grécia. No Minho, ao menos, se buscariam águas límpidas para Castálias e Hipocrenes. No Minho, a Citera para a mãe dos amores. Nos arvoredos desta região de sonhos, de poemas, e rumores de conversarem espíritos, é que os sátiros, as dríades e os silvanos sairiam a cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a Natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrirem-se à fantasia de poetas.
Mas que flores… quer o leitor saber que flores vestem os calvos e denegridos cerros do Minho, em Portugal. São flores a festões, cachos de corolas amarelas em jardins: é a florescência dos tojais, plantas repulsivas por seus espinhos, alegres de sua perpétua verdura, únicas a enfeitarem a terra quando a restante natureza vegetal amarelece, definha e morre. E desse privilégio como que o agreste arbusto se está gozando soberbamente; pois que vos amostra as suas pinhas de flores, e com os inflexíveis espinhos vos defende o despojá-lo delas.” (11)
“Eu, homem sem família, sem mão amiga neste mundo, há trinta anos sozinho, sem reminiscências de carícias maternais, benquisto apenas de uns cães, que pareciam amar-me com a cláusula de eu os sustentar e agasalhar; eu, que naquele tão festivo dia da nossa terra, não tinha colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um lugar no escabelo, nem parente abastado, que de mim se alembrasse à hora dos brindes com generosos vinhos em lúcidos cristais, eu vendo-me com lágrimas em minha sombra, assim me fora a contemplar a felicidade alheia pelas chãs e outeiros do devoto Minho.
Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa ideia, que se deleitava em vestir de folhagem a árvore nua, e tristemente inclinada sobre o colmado do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no ressaio da horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas alusivas ao nascimento do Deus menino. Diante dos portões gradeados do proprietário rico é que eu não parava nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam alegrias, como em casa do jornaleiro; não sei: o certo era que as paredes da habitação opulenta não deixavam sair uma nota para o hino geral de graças e júbilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos deserdados, o Senhor dos mundos, nascido e gasalhado nas palhinhas de um presépio.
O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho, oscilava nas montanhas do poente, e azulejava as grimpas dos pinheirais, de onde eu, a contemplá-lo, me esquecera da distância a que me alongara da casa hospedeira daquela noite. Transmontando o sol, desceu das cumeadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a confundir-se no fumo das aldeias, a identificar-se com o escuro dos arvoredos. Fez-se um silêncio progressivo e rápido em redor de mim. Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhais rumorejava aquele seu saudoso sonido, que se me afigura sempre a inarticulada toada de mui remontoadas e remontíssimas vozes de mundos que giram nas profundezas do espaço.” (12-13)
“(…) muitas paixões sem faísca de ideia…” (Afonso Teive, 14)
(Continua)
Amadeu Gonçalves
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