[…] Organizando o seu texto, não tanto cronológica como tematicamente, como se de um puzzle se tratasse, a Autora vai pacientemente juntando as peças que permitem pouco a pouco revelar os cambiantes, os matizes, os dilemas íntimos da personalidade complexa, notável e fascinante de Ana Plácido e os meandros da sua existência conturbada e única. E através desse exercício, em filigrana, para além do desenho da vida de Ana vai sobressaindo também o que da matéria da sua vida foi sendo plasmado na obra literária de Camilo Castelo Branco, bem como o quadro mental do século XIX que presidiu ao desenrolar da vida dos dois amantes.
Estamos pois, perante uma Biografia de múltiplo interesse e com vários planos de leitura.
Com base numa documentação exaustiva e variada, critica e rigorosamente manejada que inclui, entre outras fontes, cartas, jornais, revistas da época, inteligentemente combinadas com as pistas sugeridas na obra literária de Ana e de Camilo, a Biógrafa vai-nos desocultando, pouco a pouco, ” os mil segredos da mulher de púrpura e negro, que se escondem por detrás do vestido de seda e da mantilette do mesmo tecido” (p. 215).
Num relato vibrante e arrebatador, os episódios romanescos da vida de Ana Plácido vão passando perante o olhar atónito do leitor: os sonhos de menina, o casamento precoce e contrariado, o jogo de olhares com Camilo no Baile da Assembleia do Porto, o amor clandestino. A intensidade do drama adensa-se com o escândalo do adultério, a expulsão de casa, os enxovalhos e a maledicência, a humilhação da clausura forçada, para atingir o clímax com a prisão dos amantes na Cadeia da Relação do Porto. Depois da libertação, segue-se o esfriamento da relação entre os amantes, as dificuldades económicas que marcaram uma vida errante e um amor intermitente, e a vida conjugal e familiar com Camilo até à sua morte (1890).
A pontuar todas as etapas da vida de Ana Plácido, Amélia Campos assinala a presença constante do seu amor pela literatura e a aspiração a uma idealidade indefinida de contornos românticos.
Impõe-se a faceta, até agora descurada, de Ana Plácido enquanto jornalista produtiva e independente, colaboradora profissional de Camilo Castelo Branco. Sublinha-se a sua faceta, até agora esquecida, de tradutora e escritora inspirada, detentora dessa “capacidade de sentir e de escrever o sentimento dramático da vida”, pese embora as aspirações criadoras que, ainda assim, ficaram por cumprir em toda a sua plenitude. Enfatiza-se ainda a sua face de mulher de negócios, rendeira, bastião da casa de família.
Ao longo da biografia, como pano de fundo dos enredos desta “alma inquieta,” emerge o panorama de uma sociedade estupefacta perante a desfaçatez, a ousadia e a determinação desta mulher, numa época em que a reserva, a submissão e a modéstia delimitavam com rigidez o universo feminino.
É assim que esta biografia acaba por oferecer também um painel colorido sobre a sociedade burguesa nortenha da segunda metade do séc. XIX e o quadro mental que a enformou, com os seus códigos de conduta e de sociabilidade, modelos de feminilidade e masculinidade, formatos de educação, tabus, falsos moralismos, vícios privados e públicas virtudes.
Através de uma atenção ao pormenor, ao pequeno detalhe, mediante o recurso à citação literária criteriosamente seleccionada, Maria Amélia Campos consegue transportar o leitor para os ambientes e sensações que os impregnaram: a “espuma dos dias”, os bailes e seu brilho mundano, as tertúlias literárias e artísticas, as casas e seus interiores de veludo, a gestualidade apertada dos corpos.
E o desenho de Ana Plácido vai emergindo.
Interroga-se a Autora: “Mas, finalmente, quem era esta mulher? Para uns, petulante, exigente, pretensiosa, excêntrica, amante de bizarrias. Para outros dotada de um carácter firme, nas convicções e ideias, pois trocara a honra e posição social pela estrela funesta da sua paixão” (p. 218).
E a pergunta, insistente, vai ecoando: Quem foi afinal Ana Plácido?
Ouçamos a resposta que através de uma das suas personagens de Luz Coada por Ferros Ana Plácido devolve ao leitor:
“Mulher, sou hoje
Posso falar assim com a prematura velhice da experiência e da desgraça… Diluiu o tempo muitas ideias jubilosas da antemanhã deste dia, desfizeram-se muitas impressões da infância, destas que ficam sempre gravadas na alma; os anos correram morosos na tempestade; a vereda oscilou em vulcânicas convulsões; mas esta visão primeira do amanhecer, aquele olhar caído em seio virgem, jamais pôde ser esquecido…”
Anabela Galhardo Couto
“Ana, a Lúcida: biografia de Ana Plácido, a mulher fatal de Camilo”, de Maria Amélia Campos
Novembro 21, 2008 por casadecamilo
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