Têm as grandes obras e os grandes criadores o condão mágico de permitirem a criação de grandes espaços de encontro cultural, numa espécie de respublica spiritualis, que não conhece as limitações do tempo, nem as fronteiras dos géneros ou das formas de expressão que naturalmente distinguem os artistas, ou sequer as legítimas diferenças de ideologia, de crença ou de acção política que possam separar os homens!
Camilo e a sua obra são por certo uma dessas realidades multímodas, polissémicas e perenes que, desde há mais de um século e meio mais poderosamente suscita e congrega as atenções, os interesses estéticos, a força prometaica dos criadores e o empenho dos estudiosos da sociedade portuguesa moderna. E uma das mais evidentes provas desta minha afirmação é, mesmo quando passa despercebida aos olhos tantas vezes desatentos do nosso mundo cultural, é o Prémio Casa de Camilo, [entregue] ao cineasta Manoel de Oliveira.
Com efeito, desde que foi criado, o Prémio tem distinguido estudiosos de Camilo, como Jacinto do Prado Coelho, Alexandre Cabral ou Manuel Simões, editores da sua obra, como a Livraria Lello, do Porto, sucessora de um dos mais fiéis editores do Escritor, que foi Ernesto Chardron, e agora um cineasta da craveira de Manoel de Oliveira, em cuja obra os dramas de Camilo e das suas personagens têm parte tão significativa, pela quantidade, pela qualidade mas, com não menor dimensão, pelos caminhos verdadeiramente renovadores que com o seu tratamento rasgou no campo da sétima arte, justamente numa intersecção que tão difícil e polémica se tem mostrado desde a sua invenção, como é o do tratamento cinematográfico da obra literária ou da difícil personalidade dos seus criadores.
Grande e renovadora é, na verdade, a presença da matéria camiliana na obra cinematográfica de Manoel de Oliveira.
Já quando, em 1940, realizou com António Mendes um documentário sobre Famalicão, Manoel de Oliveira inseriu nessa curta metragem uma sequência dedicada a uma visita à Casa de S. Miguel de Seide, cujo centro incide significativamente sobre o suicídio do Escritor que naqueles espaços vivera, durante quase trinta anos, o doloroso calvário da sua vida.
A partir daí, e certamente por considerar o significado da personalidade e da obra de Camilo como uma das expressões mais completas e emblemáticas da sensibilidade e da cultura do Homem Português de sempre, nunca mais esqueceria o tema e as potencialidades de expressão cinemática que ele oferecia.
Assim, em 1978, realizaria uma nova versão do Amor de Perdição, logo seguida, um ano depois, por Francisca, com base no texto de Fanny Owen, onde Agustina Bessa Luís ficcionalizara, como se sabe, o caso de “amor frustrado” ocorrido em 1850, entre uma filha de um coronel inglês que militara em 1834 no Cerco do Porto, e José Augusto Pinto de Magalhães, e no qual Camilo tivera parte tão importante quanto, ainda hoje, misteriosa.
E, em 1992, voltaria a levar à tela, com O Dia do Desespero, um Camilo muito mais dramaticamente amadurecido e tragicamente vencido pela vida.
Tenho pena de me faltar tanto a competência para dar opinião em tal matéria. Desejaria ver, neste lugar e nesta função de louvar a cinematografia camiliana de Manoel de Oliveira, voz mais autorizada do que a minha – a de João Benard da Costa ou de Abílio Hernandez Cardoso. Creio, porém, que, de modo bem mais modesto, me cabe hoje, tão-só, dar as razões que motivaram a atribuição do prémio. O pior é que, mesmo para isso, eu devia ter conhecimentos da arte do Cinema que, por meu mal, não tenho!…
Terei, pois, de me valer do pouco que sei de literatura e de Camilo e, talvez em não menor parcela, da minha já velha, mas sempre renovada, condição de apaixonado e inveterado leitor da sua obra genial!…
O que mais me impressiona na arte imagética de Manoel de Oliveira é o modo extraordinariamente surpreendente com que a sua câmara, assumindo consciente e deliberadamente a função de narrador (ou dos narradores) do texto narrativo, faz dizer à imagem aquilo que, no texto literário, é dito pelas palavras, no plano da língua. Ora esta transformação, num texto e num estilo tão ricos de passionalidade como são os de Camilo, é que se me afigura verdadeiramente à altura da genialidade do mágico Escritor de Seide.
Quer isto dizer que, os grandes problemas que se deparam ao cineasta que quer transpor para a tela o texto literário, se não quer ficar-se no plano de um mero documentário “noticioso” do caso narrado pela ficção, multiplicam-se quando a ficção tem a inconfundível marca passional que indelevelmente lhe conferiu a pena de Camilo ou mesmo de uma Agustina, escrevendo sobre o um drama, camiliano pela dupla condição das suas características diegéticas e poéticas…
Mas a câmara cinematográfica de Manoel de Oliveira resolveu tais problemas com uma força poética só comparável à força passional do romantismo camiliano, ao descobrir, para as imagens que, nos seus filmes, substituem as palavras, a eloquência incomparável da retórica do silêncio e o jogo discretamente caleidoscópico da luz com as sombras.
Neste tempo de pressas em que vivemos e onde nem sequer temos vagar para sermos felizes com a arte que os outros para nós criam, tenho ouvido por vezes certas pessoas queixarem-se da demora dos filmes de Manoel de Oliveira. Seia caso de, parafraseando Camões, lhes perguntar como queriam que pudesse limitar-se a água de um mar tão vasto em tão pequeno vaso!… Como se a leitura de um romance, mesmo o mais curto, de Camilo não levasse mais tempo do que o mais longo dos seus filmes…
Para mim, o leitor de Camilo, o tempo narrativo das imagens do cinema de Manoel de Oliveira é precisamente o factor que melhor (eu diria com maior carga poética) traduz a dimensão dramaticamente passional que marca com estigmas profundos de beleza e de eternidade, o texto ficcional camiliano, convertendo-se desse modo no traço inexcedível de arte que singulariza o cineasta com a mesma altura que, há cem anos, conferira ao romancista a glória perene que o fará viver para sempre.
Bastaria e sobraria esta razão para justificar o prémio. Para além dela, porém, avulta ainda a fundamental contribuição da obra de Manoel de Oliveira para chamar ao convívio com a obra do romancista que lhe deu matéria toda uma geração que, seduzida pelo atractivo da imagem audio-visual, se mostra relativamente afastada dos hábitos de leitura que, durante tantos séculos, constituíram a base mais sólida da nossa cultura.
É que sendo uma arte em si, o cinema (e particularmente o cinema de criadores como Manoel de Oliveira) é cada vez mais uma encruzilhada de artes, a partir da qual quem vinha por um caminho facilmente se deixa atrair para outro, porventura desconhecia ou esquecera quando ali chegou.
Quer isto dizer que, sendo arte e arte de lei, na sua própria essência, o cinema camiliano de Manoel de Oliveira se converteu também num poderoso factor da obra de Camilo que é obra de todos nós e de todos os nossos dias.
[…] Por isso me atrevo a pensar que poderemos sempre contar consigo, com a sua arte e com a sua alma para mantermos viva e activa a memória de Camilo, não encerrada num museu de figuras de cera ou de farrapos de tempo que o tempo dilacere e apodreça. Mas como sinais estuantes da eternidade do que somos como alma colectiva, como língua e como a cultura que nessa língua, como na do seu cinema Portugal e os Portugueses hão-de continuar a ser capazes de exprimir.
O génio literário de Camilo encontrou na sua estética cinematográfica uma expressão à altura a que a vida o elevou. Gratos a Camilo, não podíamos deixar de lhe estar gratos a si.
E foi a expressão dessa gratidão, dessa admiração e desse louvor, que quisemos, modestamente embora, e na medida do que somos e do que podemos, manifestar-lhe neste prémio, cujo símbolo, a pena, também soube transpor de novo para a vida eterna da arte, com a sua Câmara de filmar.
Bem haja! E venha sempre à Casa de Seide, revisitar Camilo e D. Ana, para afastar definitivamente daquelas paredes com a luz discreta dos seus projectores e os silêncios eloquentes da sua arte de fazer cinema, os fantasmas que tantas vezes povoaram as noites de insónia daqueles geniais desgraçados!
Verá como eles o recebem! Talvez até D. Ana nos mande erigir-lhe outro monumento, como o que, em 1862, ficou a lembrar a visita de Castilho e de Tomás Ribeiro. De uma coisa podemos assegurá-lo: Camilo ficará tão feliz por encontrar alguém à sua altura e que, com a sua arte o indemnizou do esquecimento dos seus contemporâneos, que nem por sombras lhe passará pela ideia repetir o tiro fatídico de 1 de Junho de 1890. É que os filmes que lhe consagrou mostram a inutilidade desse tiro. É que, por mais que quisesse pôr fim a uma vida cortada de dores, obras como a sua, Mestre Manoel de Oliveira, reabrem-lhe, em cada século, as portas de uma eternidade que, mesmo quando aparentemente a rejeitou, sempre desejou.
Bem haja!
Discurso proferido por Aníbal Pinto de Castro, em 18 de Setembro de 1999, por ocasião da entrega do Prémio Casa de Camilo a Manoel de Oliveira
“Manoel de Oliveira e Camilo”
Dezembro 16, 2008 por casadecamilo
Deixe uma Resposta