O infortúnio e a tendência aventurosa de Camilo Castelo Branco são responsáveis pelos mitos que se desenvolveram à sua volta. O escritor é um dos principais responsáveis (senão o primeiro) por essa aura, não só perante o carácter heterogéneo da sua obra (desde o romance ao ensaio e às memórias), mas também pelo mistério que sempre alimentou sobre a sua própria vida, a começar nas origens, e a continuar no seu espírito aventuroso… Camilo Castelo Branco – Memórias Fotobiográficas (1825-1890) de José Viale Moutinho conduz-nos com mestria no percurso multifacetado de um nossos maiores escritores, mas, mais do que isso, leva-nos ao Portugal profundo do século XIX, que o autor de Amor de Perdição representa e descreve. Figura muitas vezes desconhecida, apesar do sucesso dos seus livros e da paixão que suscita ainda hoje em tantos leitores, Camilo protagonizou uma vida atribulada de romântico que teve a lucidez de se libertar dos constrangimentos de escola que esterilizaram outras promessas. Homem cultíssimo, estudioso exaustivo da história e da sociedade, romancista fecundo — Camilo soube ultrapassar as poderosas baias românticas, indo ao encontro das tendências modernas do seu tempo. A partir de uma personalidade muito forte, o retrato que encontramos de Camilo é a representação de alguém cujo talento resulta de um cadinho onde se misturam ingredientes quase explosivos da sociedade antiga e da sociedade contemporânea, que o escritor procura contraditoriamente compreender.
Camilo nasceu em Lisboa, no segundo andar da Rua da Rosa, nº 9, no coração do Bairro Alto, a 16 de Março de 1825, filho natural de Manuel Botelho Castelo Branco e de Jacinta Rosa do Espírito Santo… A família depressa se mudou para a Rua da Oliveira. Dois anos depois, morre a mãe e, em 1830, vemos Camilo a frequentar fugazmente o mestre-escola José Inácio Luís Minas, na Rua dos Calafates, hoje do Diário do Notícias. O pai é nomeado director dos Correios em Vila Real, para onde vai com os seus. Mas, no ano seguinte, já está em Lisboa (depois de um dissabor político do pai, em tempo de guerra civil). O jovem Camilo frequenta a Escola da Calçada do Duque, do professor Satírio Salazar. Então é atacado de bexigas (que marcarão para sempre o seu rosto). Mora na Rua do Carvalho, voltando o pai a sofrer um revés político, que impede a sua almejada nomeação para os Correios. No fim da guerra civil (1834), morando a família na Rua dos Douradores, morre o pai, que deixa uma pequena herança — prédios em Lisboa e Vila Real e uma quantia em dinheiro, em parte desviado pela amante. Os irmãos Carolina Rita e Camilo são enviados para Vila Real para casa da tia paterna Rita Emília, onde chegam depois de uma viagem atribulada.
«Aos meus dez anos, levantou-se uma tempestade no seio da família. Uma vaga levou o meu pai à sepultura; outra atirou comigo de Lisboa minha pátria, para o torrão agro e triste do Norte; e a outra… Não merece crónica a outra: arrebatou-me um esperançoso património…». A herança motiva, pois, uma história triste. Em 1838, a tia vai para Vilarinho de Sarmadã, a duas léguas de Vila Real, onde Carolina Rita casa com o irmão do padre Azevedo, em casa de quem estão. «Vivi dois anos como o padre António Azevedo. (. .) Ensinava-me latim e música de canto»… «Lembra-se daquele incorrigível rapaz de catorze anos que ia à venda da Serra do Mesio jogar a bisca com os carvoeiros, e a bordoada muitas vezes? Esse rapaz sou eu; é este velho, que lhe escreve do cubículo de um hospital…». A par e passo, seguimos o percurso de Camilo, que aos dezasseis anos casa com Joaquina Pereira de França, que encontra em terras de Basto, em Friúme. Ribeira de Pena, ainda por entre mil peripécias ligadas à herança. Ainda nos lugares de Basto, encontra Macário Afonso, que mais tarde imortalizará: «Eusébio tinha gamão e damas; sabia fazer ladroeiras com os dados; jogava a pataco a partida e dizia muitos anexins obrigatórios. Entretanto, nasce a filha Rosa e inscreve-se na Escola Médica e Academia Politécnica do Porto, após prestar provas no Liceu… Depois vai para Coimbra — a «nossa jovial convivência em um casebre da Couraça dos Apóstolos»…
Viale Moutinho faz questão de seguir o caminho de Camilo, usando o seu próprio testemunho, e o resultado é muito bom. Por entre a paisagem agreste e a crueza dos lugares, sentimos formar-se e afirmar-se o Camilo que vamos conhecendo melhor. Em 1846, em tempos de guerra civil, na qual os anti-cabralistas se aliaram à guerrilha miguelista, Camilo envolve-se em duras polémicas políticas que atingem as vias de facto. Chega a dizer que foi ajudante de ordens do general Mc Donnell, mas não há provas disso. O que se sabe é o que conta nas Memórias do Cárcere, sobre o encontro com tenente Milhundres, à saída de Penafiel, em que, vindo de Coimbra com um companheiro transido de medo, se declara miguelista, talvez mais por uma de aventura e sobrevivência («Eu achava extrema graça a tudo aquilo»). Joaquina e a sua filha Rosa morrem nos anos seguintes, mas Camilo anda enamorado de Patrícia Emília, um amor incandescente que lhe dará a filha Bernardina Amélia. É uma vida intensamente vivida, conflituosa, inconformista, sempre polémica. A tudo acresce a crise religiosa e até a necessidade de aprofundar os estudos teológicos. Deseja tornar ordens menores e submete-se com sucesso a exames para o efeito… Sol de pouca dura. A contradição caracteriza Camilo. De novo acende-se, contudo, a fogosidade amorosa, com o surgimento dramático de Fanny Owen, que não corresponde aos seus afectos.
Em l854 conhece Vieira de Castro, encontra-se com Castilho, e é o ano das mortes de Fanny Owen e, pouco depois, de seu marido José Augusto Pinto de Magalhães (amigo íntimo de Camilo). A sombra do suicídio assoma. Dois anos depois, vive com uma costureira no Candal, mas o que marca o ano de 56 é o elogio que Herculano lhe faz a propósito do romance «Onde está a felicidade?». O historiador dirá mais tarde: «O sr. Camilo Castelo Branco é um dos escritores mais fecundos do país e, indiscutivelmente, o primeiro romancista português».
Camilo começa a ser reconhecido… Vai para Viana do Castelo, para S. João de Arga, e é então que surge Ana Plácido. Depressa nasce o escândalo. Manuel Pinheiro Alves, brasileiro de torna-viagem, irascível marido da Ana, procura contrariar, com todos os meios ao seu alcance, a situação… Ana Plácido é presa na Cadeia da Relação. Camilo visita-a clandestinamente e depois entrega-se. E o tempo de Memórias do Cárcere, obra-prima do escritor, então na sua maturidade literária e intelectual. Trabalha incessantemente. A cadeia torna-se o seu escritório. Por duas vezes o visita D. Pedro V («Estimarei que se livre cedo»). O romancista joga o seu prestígio contra o poder económico de Pinheiro Alves. Marcelino de Matos é o seu advogado. Camilo ficar-lhe-á eternamente grato pelo apoio e pela determinação do causídico. Em 16 de Outubro de 1861,o pesadelo termina. É lida a sentença à meia hora da madrugada: Camilo e Ana Plácido são absolvidos. No ano seguinte sai o Amor de Perdição e as obras sucedem-se com muito bom eco público. Camilo é figura consagrada e admirada. Em 1863, Pinheiro Alves morre em Famalicão. Ana Plácido recebe em herança a casa de S. Miguel de Seide, onde passará a viver com Camilo e os filhos. «A casa onde vivo, rodeiam-na pinhais gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas». O romancista está no auge do seu talento. Admira Antero de Quental, o talentoso poeta de Coimbra («Contemplei-o com admirável admiração»), mas considera excessivas as invectivas contra Castilho. O seu amigo Vieira de Castro estrangula a mulher que o atraiçoara. Camilo defende o homicida, escrevendo em sua defesa. O deputado não escapará, porém, ao degredo. O imperador do Brasil visita o escritor no Porto, no atelier do artista da Rua do Bonjardim (1872). As doenças manifestam-se, a vista vai-se perdendo, as vidas dos filhos, a loucura de Jorge e a estúrdia de Nuno, angustiam-no. Nem os banhos de mar da Póvoa de Varzim o aquietam. Sente-se a decadência e a profunda depressão. A luz vai-se desvanecendo, mas o talento bem evidente da obra é indiscutível. As imagens e os textos ligam-se numa relação natural que nos permite compreender melhor o génio de Camilo.
Guilherme d’ Oliveira Martins
Jornal de Letras, 16 a 29.12.2009
“A presença viva de Camilo”, por Guilherme d’Oliveira Martins
Fevereiro 7, 2010 por casadecamilo
Publicado em Edições | Com as etiquetas Academia Politécnica do Porto, Amor de Perdição, Ana Plácido, Bernardina Amélia, Camilo, Camilo Castelo Branco, Casa de Camilo, Casa-Museu de Camilo, Coimbra, Diário de Notícias, Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Fanny Owen, Guilherme d'Oliveira Martins, Jornal de Letras, José Augusto Pinto de Magalhães, José Viale Moutinho, Memórias do Cárcere, Milhundres, Patrícia Emília de Barros, Penafiel, Pinheiro Alves, S. Miguel de Seide | Deixe um Comentário
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